Eu gosto de você não gosta mais de mim | Do Amor #47
Era nítido. Bastava ele chegar na roda de amigos e ela se transformava, ficava mais quietinha, observadora. Ria das piadas dele, enfiava os dedos da mão entre os cabelos e os chacoalhava de baixo para cima em busca de volume, de certa selvageria. Todo mundo sabia da queda dela por ele de modo tão claro que chegavam a fazer piadinhas carinhosas com o intuito de ajudar o possível casal.
Ele? Ficava na dele, entendia as indiretas e sorria de canto de boca, dava um abraço nela e levantava o copo de bebida para brindes que disfarçavam algum desconforto. Ambos entravam na graça de quando em quando, juravam amor eterno, "de irmãos", e diziam que um dia ainda iriam surpreender a turma chegando juntos de mãos dadas em alguma festa. "E daí eu quero ver a cara de vocês", ela dizia numa mistura de zombaria e possibilidade. Enfiava uma das mãos no bolso e olhava para o chão logo depois, como se procurasse o caminho para que a afirmação se tornasse, enfim, realidade.
E ele? Dava beijos na testa dela, conversavam até tarde da madrugada sobre a qualidade dos filmes indicados aos prêmios de Hollywood ou sobre os bons discos da MPB. Dividiam o beck, a cerveja, a coberta no sofá da casa dos amigos. Ela dizia que ia embora, dava um abraço nele e um beijo demorado no rosto e, mais uma vez, partia.
Nunca soube, ele, dizer quando foi o momento exato em que bateu a vontade de retribuir. Bonita ela sempre foi, isso era senso comum na turma, os bate-papos eram sempre dos mais proveitosos. Faltava o desejo e ele chegou. Queria puxar ela de canto mais pro meio da festa e conversar, pra não causar aquele alarde se todo mundo estivesse ainda sóbrio e prestando atenção neles dois. Ela disse que queria falar com ele mais tarde também.
Foi quando o Caetano começou a declamar, pelos falantes, o refrão de Um Índio, que eles foram para o canto da sala. "Virá, apaixonadamente como Peri" ecoando, amigos dançando, os dois ao lado do pilar. Ele iria dizer que tava afim, que queria, que tava no mesmo barco, que era pra começar a rolar, ia convidá-la para sair, ia pedir para ficar com ela, estava para sugerir que os dois fossem para um dos quartos ou para o carro, que dessem a volta no quarteirão, que fossem para detrás da pilastra para, enfim, ele poder sentir a boca dela no primeiro beijo como casal.
Ela pediu para ter a palavra primeiro.
Comentou com ele da penúltima viagem que a turma fez, riu novamente da história de ele ter escorregado perto da piscina e ter ficado com um roxo perto da bunda por quase uma semana. Ele riu de volta, passou a mão na nuca e sentiu a palma meio úmida. "Eu tô lembrando daquele dia porque você levou aquele seu amigo, gente boa demais. E eu queria te agradecer porque a gente tá saindo desde que voltamos daquela chácara. Ele lembra muito você, sabia? Claro, amigos lá da sua cidade, né? Mesmo sotaque e tals... Mas, bom, eu queria, de novo, era te agradecer. Eu adoro você. Amor de irmão, lembra?". Deu um abraço nele, um beijo demorado, daqueles que ele já estava acostumado, e foi pegar outra cerveja.
De fundo, o caetano profetizava. "Surpreenderá a todos não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando terá sido o óbvio".
O amor é tão óbvio.