"Você não me conhece até chegar às 4 da manhã comigo" | Do Amor #66

Completo acaso. Foi perguntando se naquele ponto passava algum ônibus para o centro que ele ficou de conversa com aquela menina de cabelo enorme e descolorido, com os fios não divididos ao meio, mas jogados do lado esquerdo para o direito, o que fazia parecer uma onda dourada e desbotada no topo da cabeça. Tinha os olhos grandes e piscava muito pouco, dando a ela um ar de curiosidade extrema, como se lutasse para captar com aquelas duas bolas negras separadas pelo nariz pequeno e quadradinho absolutamente tudo o que acontecia ao seu redor. 

Da pergunta a conversa. Ela passou a comentar alguns lugares legais que tinha o centro que estavam num perímetro bem pequeno do trajeto do coletivo. Entraram juntos e sentaram-se lado a lado. Ela olhando pela janela e apontando casas e bares enquanto ele não tirava os olhos dela, fato que a fazia sorrir toda vez que voltava a olhar para ele. 

Pegou-o pelo braço e desceram juntos na avenida. "Vem cá. Você tem que ver isso". Levou-no numa loja pequena de discos e mostrou-lhe todo o local. Era um sebo, que poderia ser qualquer outro sebo, ela disse, mas aquele era especial porque tinha a curadoria certa com os discos certos. Comentou da necessidade, em meio a tanto ruído, de haver pequenos locais assim com um cuidado em oferecer só o que vale o tempo.

Comprou para ele o disco da Ella Fitzgerald em que ela canta coisas do Cole Porter. Embrulhou pra presente e pediu para ele abrir só em casa. De braços dados ela o conduziu, enquanto explicava quais tipos de calça ela gostava de ver os homens usando, para um café que ele ainda não conhecia, escurinho, mesinhas redondas perfeitas para conversas entre duas pessoas.

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E passaram-se horas entre frivolidades e opiniões labirínticas sobre política internacional e esportes. Pediram algo para beliscar, relembraram infâncias distintas, ela na cidade grande e ele num quase vilarejo bem no sul do estado. Compararam brincadeiras de criança e maneiras com que os adolescentes de cada local faziam para trocar beijos depois da escola. Riram e trocaram até o cair da noite.

 E daí ele se pegou com as duas mãos no queixo, cotovelos postados na mesinha, suspirando e escutando outra opinião dela. "Caramba, que dia incrível, hein", ele soltou enquanto de recompunha na cadeira. "Parece que eu te conheço há anos...", confessou com os olhos desviados para os próprios joelhos.

"Ah, mas não mesmo. Você não me conhece de verdade até chegar às quatro da manhã comigo", ela replicou enquanto deixava as costas eretas e mordia as costas dos próprios dedos com se tentasse segurar suas vontades sem sucesso. "Vem?", ela questionou segurando ele pelo pulso.

O Amor. Às vezes a gente só vai.

Jader Pires