A gente ama mais que odeia ou odeia mais que ama? | Do Amor #92
Pressiona e passa. Pressiona e passa. Poucas coisas nos dias de hoje conseguem exprimir mais o tédio do que aplicativos de paquera. Você não quer papo com ninguém, não quer comer a mina, não tá afim de chupar um cara. O corpo amolengado no sofá, um prato com resto de comida há horas no braço da poltrona, o grande foda-se para o mundo inteirinho. Aperta e passa. Abre o app. Vê as fotografias. Dá um desânimo. Aperta e passa. As bios bregas. Aperta e vai para o próximo. O polegar com um desempenho de atleta. Pressiona e vai para o outro perfil. O asco. Um enfado, o enjoo. Mas a gente não para. Aperta e passa. Aperta e passa.
Afundado no marasmo, abriu seu próprio descritivo e colocou: “cansado de relações líquidas. Quero me relacionar". Não sabia bem se queria mesmo, mas decidiu que seria assim. “Ah, e uma guria de 6 anos”, incluiu para que soubessem. E, quando falou da filha, ela veio. Também gaúcha, com dois filhos. Um correspondeu ao outro e começaram a se falar. Trocaram trivialidades sobre família e as questões dos filhos, rotinas e delícias, coisinhas e problemas. E até bateu. Conversa boa. Ficaram assim uns três dias. Na troca.
Marcaram um café. Seria bom sentar e saber mais. Mas, no dia, ele furou. Bateu nele uma preguiça desgraçada. De falar. De estar. Do decoro. De abraço e papinho. De fingir atenção. De sorrir. “Pra quê? Pra quem?”. O cansaço. Deu uma desculpinha e desmarcou. Só que seguiram falando. Ainda rodava. Ainda rolava. Dias depois, marcaram outra tentativa e, dessa vez, ele compareceu. E encontrou uma garota que era o completo oposto do que ele gostava fisicamente. Tudo o que ele procurava quando desejava uma mulher, nela carecia. Só que ela iluminou o lugar. Dona de si, sentou-se e falaram. Por horas. Desenvolta e agradável, carregou uma hora e meia de doçura no dia dele. "Foi foda", pensou. “Que mulher”, desabafou para si em voz alta quando foi esperar o Uber na saída. Só que, no caminho para casa, foi murchando, acinzentando. “Ela é demais pra mim”. Deixou o entusiasmo minguar de pouco, gotejando problematizações até chegar em casa. O resultado? Duas semanas sem falar com ela. Não abria as mensagens para relê-las. Tentava afastar a vontade do fluxo de ideias.
Mas bateu a vontade.
Um quase desespero. “Foda-se”, cuspiu enquanto pegava o celular e abria as mensagens dela. “Oi, como cê tá?”, perguntou ainda na esperança de ela não ter desistido de tudo. A garota estava viajando, na casa dos pais. Pequenas férias para rever a família, levar os filhos para brincar. Passaram esses dias se falando. Sobre tudo. Cotidiano, o que ela estava fazendo, pensamentos malucos dos dois. A importância que ela dava para as coisas que ele dizia, para os assuntos dele. Bateu forte. Mais que coisa de corpo. Uma atenção real que ele não conhecia direito. “Você é a que eu quero do meu lado”. Ele jogou essa do nada e ela riu. “Ainda vou namorar contigo”. Aguardou uns minutos para a resposta dela. “Tá louco, guri? A gente nem saiu ainda juntos”. Nem sabiam se isso aconteceria. Ela voltou da viagem, mas não marcaram nada.
Só foram, se ver dias mais tarde, quando ele foi fotografar o show de uma banda perto da casa dela. “Amanhã. Vamos?”, ele perguntou ao apresentar a proposta para ela. E foram. Algumas horas sem atitude por parte dele fizeram com que ela se apresentasse na linha de frente. Acompanhava ele fotografando e depois falando qualquer coisa com ela, meio que olhando para o chão, acompanhando algum rastro de sujeira perto do palco. Em determinado momento, quando ele pediu para que ela lhe entregasse outra câmera, ela, sorrindo com escárnio, puxou-o pelo braço e tascou-lhe o beijo. No escuro do gargarejo, se pegaram mais um tanto. Levou-a para casa de Uber e deixou ela subir.
Não foi junto.
E mais três dias sem se falar.
Não sabia se tinha sido meio mole, se ela ainda teria interesse em sair com um cara que não puxasse, que não comandasse. Mas daí aconteceu de ter outro show no mesmo local, perto da casa dela, com ele escalado para fazer as fotografias. Ele precisaria estar no local horas antes, então perguntou se poderia passar na casa dela para um oi. “Posso subir no teu prédio?”. “Pode”. Teria uma hora e meia até voltar para o trabalho. Foi até o apartamento dela, sentaram-se para beber e se falar. Não tocaram no assunto do último encontro, ele ainda muito tímido, trocava ideias com ela sentindo o corpo travado, como se uma espécie de vodu o impedisse se partir para cima. Ela segurava os cabelos na lateral do rosto com uma das mãos e apoiava o braço no encosto do sofá enquanto conversava com ele de volta, ele tendo a plena certeza que ela estava a falar com uma figura de mármore, imutável. “Triiiiim”. Salvo pelo celular.
Ele finalmente se movimenta e atende.
A organização do evento estava cancelando o show por qualquer motivo. Não teria mais que ir embora. Ele comentou com ela do fato, sinal entendido ou reconfigurado na cabeça dela para o avanço. Novamente, seria ela a felina a saltar em cima de sua presa. Sentou-se no colo dele no sofá, apertou as coxas contra as dele, só para demonstrar controle, e abaixou-se. O beijo. O sexo. De nove às três.
Não conseguia nem assimilar o quebranto que sentia no dia seguinte, um cansaço profundo, como se sua energia vital estivesse toda dentro dela depois daquele show que ela lhe apresentou. O encontro, o magnetismo na fala dela, o contorcionismo, a não necessidade de agradar. Fez mais três convites nos dias que se seguiram, para se verem de novo, todos gentilmente negados por ela, que estava com problemas de agenda. Situações com os filhos, outros caras que ela também tinha conhecido no mesmo aplicativo de onde ele saiu. Outro show e ela não podia ir e não seria de bom tom ele aparecer na casa dela. “Visitas”. Só no evento seguinte ela abriu uma brecha e foi. “Hoje você vai me levar pra casa”, ela disse quando chegou lá. Se divertiram bem, ela encheu bem a lata.
Como prometido, ele serviu de companhia para que ela chegasse, não sã, mas salva em casa. Transaram de novo e ele ficou para a manhã seguinte. E passaram a se ver com frequência. Toda semana tinha um ou mais encontros, o diálogo passou a ser mais fluido e íntimo, cortando alguns rodeios naturais de quem já sabe o que o outro vai pensar. Certa tarde, bem no meio dela mesmo, ele manda uma mensagem para ela: “essa segunda tá chata demais. Vamos pra um motel?”. E foram. Mataram parte do dia de trabalho trepando num quarto barato. Deitado na cama, o paradoxo do êxtase mental com a estafa muscular o intrigava demais. Olhava para cima, para o espelho preso no teto e a figura pequena dela o encarava de volta, sempre com aquela boca de zombaria, de quem está sempre um passo à frente no raciocínio. “Acho que vou começar a pensar em código só pra você parar de tentar ler meus pensamentos”, ele soltou com o restolho de forças que tinha nos pulmões. Ela aumentou o sorriso e aproximou o corpo gelado do ar condicionado. “Você achou que eu ia negar? Que eu ia dar pra trás e não aceitaria, né? O convite?”. Ele não respondeu. Mas, para ele mesmo, repetiu na cabeça: “que mulher”.
Começaram a namorar depois do feriado de dia das crianças. “Não vou te pedir agora pra não ser um sinal de mais fedelhos nessa brincadeira. Ainda não”, ele comentou baixinho num abraço. Quando virou a madrugada, pedido cafona aceito. Meses de remanso. Saidinhas juntos, trocas, aproximação, ciúmes, construção. Uma vez, marcaram de ir ao cinema, mas antes foram fazer uma visita à uma amiga dele de tempos. Na saída da casa, ela cismou. “Sua amiga gosta de você”. Discussão, negação, choro e insegurança. Construção. Foram entendendo o tempo um do outro, os atalhos para acessarem o outro. Construção. Incertezas. Ela ainda tinha coisas para resolver com o pai dos filhos dela. Ainda restava algo. Dúvidas. Construção. Tudo abaixo. Paredes e planos. Entulhos. Ela precisava viajar para a casa dos pais e foi de maneira meio apressada, sem muitas despedidas.
De lá, mandou a mensagem. “Não dá mais pra mim. Acabou”.
Escombros.
Na volta, ela confessou que tava voltando para o ex. Para o passado que eles tiveram juntos. Estavam indo levar o filho mais novo para ver o mar pela primeira vez. E ele não estava nos planos. Uma família refeita. E ele sobrando. Restos. Não teve muita explicação, parecia uma decisão tomada, um ponto esclarecido. Precisava, segundo ele, seguir com a vida. Não saiu com ninguém nas semanas seguintes, mas não foi atrás dela. Buscava não ser um incômodo, fardo a ser pensado. Resolvido. O telefonema dela no começo da noite foi recebido com estranhamento, mas atendeu com toda a disponibilidade. Explicou que não estava bem, mas que estava levando, Que dava para levar. Ela acabou abrindo que, além do ex, também estava com pensamentos confusos sobre outro cara, um terceiro. Ele sabia desse cara. Era outro que também apareceu na vida dela por meio dos aplicativos de paquera, que tinha um sexo bom, que ela gostava do jeito com que ele fazia.
Ele desejou à ela toda a sorte.
Se colocou disponível para futuras conversas, caso ela sentisse necessidade. Faltava fazer umas devoluções, então marcaram de se ver. Ele levou uma lingerie que estava com ele, que havia comprado de presente, mas que não havia tido tempo de entregar. Ela pediu para experimentar, para ver se ele gostava de como havia ficado. Transaram nesse dia. Na tarde seguinte, ela disse que havia terminado. Com o ex-marido. Com o terceiro cara. Confirmou que queria era estar com ele. Que era o que fazia real sentido.
E voltaram. Juntos, os dois. Foram seis meses, apenas. Brigas cada vez mais constantes. Coisas pequenas da rotina, oscilações de humores, a sabedoria adquirida de acertar onde doía no outro. Insegurança. O ex sempre rondando. O terceiro cara ainda em cena. Depois por qualquer som, os movimentos mais inocentes, as afirmações mais brandas. Brigavam, Até acabar a paciência. Até não se suportarem por duas horas debaixo do mesmo teto. Terminaram. Nessa época, logo na primeira semana, ele havia feito uma tatuagem no braço. Era uma gata usando óculos. Era o modelo que ela usava, desenhado no bichano tatuado. Era uma homenagem. Assim que se separaram, na semana seguinte, ele cobriu o desenho. Botou uma câmera rabiscada no lugar. Umas flores. Soterrada a lembrança. Mas ainda queria se lembrar. Voltou no tatuador e pediu para escrever, logo abaixo:
“It’s not about the camera. It’s about the person behind the camera”.
Sempre saberia que, atrás daquela câmera, haveria ela. Ele não explicou isso pra amiga que encontrou dias depois, no café que ficava bem na esquina da casa da ex dele. Foi total acaso, ela o chamou com um “psiu” e perguntou se era mesmo ele. Espanto mútuo. Se conheceram quando eram pré-adolescentes. Anos depois, assim, se achar feito comédia romântica. Ela havia sido o primeiro beijo dele. A primeira vez dele. Ela confessou, mais tarde, que ele tb havia tirado a virgindade dela, na boca, entre as pernas. Juntos anos depois. Nem demorou tanto para estarem os dois se pegando. A atração natural, uma curiosidade de “que será que eu vi nessa pessoa?”. Se sentiram à vontade rapidamente na companhia um do outro, lhes era interessante a jovialidade meio boba que batiam neles juntos. Passavam noites intensas juntos, bar de strip longe de casa, sexo pesado, na rua, se machucavam e riam. Ela, chapada de álcool e antialérgico tentando atravessar a avenida correndo, tiros na lagoa com o revólver do irmão dele. Num acordo silencioso, ajudavam na solidão um do outro. Não precisaram abrir, mas sabiam que a companhia deles era para cobrir buracos.
E era gostoso naqueles recortes.
Não contou para essa amiga que a ex o havia convidado para uma conversa. Foram no café na esquina da casa dela, em que ele conheceu novamente a amiga que estava saindo. E tiveram um dos melhores papos entre eles. Leves, sem a necessidade de representar ou bajular. Contaram da vida e reavaliaram o que tiveram. As coisas boas. Sem juízo de valor. Uma tranquilidade que pensaram ser impossível; de ter depois de tudo. Ele pegou o celular e pediu para ela ler um conto que ele viu na Internet. Chamava “Casal se reencontra quatro anos depois de terminar”, de um escritor que ele gostava. Ela riu se vendo no texto. Prometeram então manter contato, chegar mais perto. Afinal, estava tudo bem. Ele lembrou que tinha uma lente na casa dela, perguntou se poderia pegar qualquer dia desses. Passou no prédio dela num final de tarde e pediu para descer com o pertence. Bateram um papinho, riram, ele disse “é, a gente não daria certo e ponto”. Comentou que ia bloqueá-la nas redes por um tempo, só pra não acumular sofrimento. Ela tomou dores, ficou brava justamente pela conversa anterior de que estava tudo bem. Se havia dor, não estava nada bem. Brigaram. Tentaram se ofender. Foi embora sem dar tchau.
Passou dias enfurnado em casa. Não saiu com a amiga nem atendeu os telefonemas dela. Também não respondeu às mensagens da ex. Preguiça. Esgotamento. Mas a insistência foi maior. Marcou de ver a ex. Se encontraram para uma caminhada. Civilizados, sem tocar nos últimos assuntos. Subiram para o apartamento dela, trocaram um abraço fraterno, de agradecimento da ajuda mútua. Fizeram sexo na cozinha. Depois ela contou, enquanto comiam, que estava voltando mais uma vez para o ex-marido. Que via a história dos dois ainda sem final. Ele desejou sorte à ela. Uma aspiração genuína. Foi ver a amiga na mesma noite. Contou onde estava, o que havia acontecido, da ambição autêntica de que acontecesse o melhor à ex. Ganhou um beijo. A amiga o puxou pela mão. “Onde a gente vai?”, ele perguntou. “Num lugar que você nunca foi antes”, ela disse. “Tá afim?”, complementou. “Vamo lá”, ele bufou enquanto se levantava da cadeira. Com certa preguiça, mas foi.