A herança
Era uma pasta avermelhada em vários tons. Seu núcleo possuía um escarlate profundo que ia perdendo território para anéis mais esbranquiçados, mas ainda vermelhos, avermelhados, até chegar na beiradinha rosácea com outros pontos corais de menor tamanho em volta. Era um pequeno arquipélago de molho de tomate colado no lado esquerdo da camisa branca que ele usara um par de vezes.
Foi reparar só no metrô, a caminho do encontro. Saiu apressado do trabalho, uma reunião de última hora que tomou parte de seu tempo, bem perto da saída. Em casa, comeu um sanduíche de almôndegas com a cabeça já montando o trajeto mental entre sua rua e o cinema que combinaram de se encontrar. Queria estar bonito para ela, claro. Foi o tempo de escovar os dentes e descer pelas escadas mesmo, quatro andares que pouparíam segundos preciosos à espera do elevador. Foi entrar na estação e o vagão chegou. O barulhinho do apito que avisa o fechamento das portas ainda ressoava nos ouvidos quando avistou o borrão. Outra vez foi pego pelo hábito familiar de sempre deixar comida cair na roupa.
“Coisa de italiano”, lembrou da avó dizendo quando ainda era adolescente e a mania já estava integrada por completo em seu dia a dia. No almoço ou no jantar, em qualquer das pequenas refeições ou boquinhas que fazia nesse intervalo, lá estava ele deixando algum respingo na gola ou nas coxas da calça jeans. Já encontrou borrifos perto dos bolsos ou na manga longa dos dias de frio, no bico do tênis vira e mexe tinha lá um lambuzado de algo. Até no couro do relógio, certa vez, ele encontrou lá um pouco de calda seca de sobremesa.
E não era só com ele. Sua família inteirinha padecia da mesma sina. A nona e suas tetas grandes, seu pais, tios e irmãos, todos conviviam com esses pequenos desastres da alimentação. Nos almoços de família, era quase que um carimbo atestando a autenticidade do parentesco, um tique como se quisessem dizer “pronto, agora sim”. Começou a divagar que essa rotina devia ter uma ancestralidade longínqua, coisa de tataravós ou até antes, algo com início lá em Pádua, no norte da Itália, quando a bota ainda nem país unificado era e, por lá, em alguma das pequenas aldeias que viviam de escambo e vingança, uma delas certamente haveria de ter o princípio de um costume involuntário, um destino que atravessaria os tempos, as gerações, um oceano inteiro e chegaria na pós modernidade com a mesma eficácia dos tempos remotos. Uma mancha na camisa.
Era esse o patrimônio de sua linhagem, o ponto fundamental que ligava todos os pontos de sua árvore genealógica, a marca de sua parentela, aquilo que deixaria para a sua prole, mesmo que não quisesse. Desceu orgulhoso do metrô e foi se encontrar com a garota que já estava na porta do cinema escolhendo o filme da noite.
Se abraçaram e cumprimentaram-se com um beijo no rosto. Pegaram a fila, pagaram por suas entradas e só então ela viu a mancha na camisa. “Puxa, olha só, sujou aqui”, disse a menina. No que ele segurou com as duas mãos, como se ostentasse o escudo do time campeão e respondeu “Isso aqui? Nada. Herança de família”.