O sigilo

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Chegou no portão de casa empapada. Desceu do ônibus calorento e pôs-se na direção que apontavam os olhos, uma caminhada quase sem valentia pela rua meio escura. Precisava de água.

Lá dentro, um silêncio estranho. O garoto, já era para ele ter retornado da escola e o marido chegava antes que ela do trabalho. Não tinha rádio ligado e nem os barulhos do videogame fazendo incômodo. Entrou pelos fundos para chegar mais rápido na cozinha e, de lá, dava pra ver que a porta do quarto do filho estava fechada, sinal que ele poderia estar em casa, e a luminosidade tristonha de um abajur na sala. Com entoação de pergunta ela chamou pelo Geraldo, seu marido, que respondeu com um singelo “tô aqui na sala”.

Estranho. A comida estava morna no forno do fogão como de costume, as obrigações de limpeza pareciam estar também em ordem, mas estava faltando vibração familiar, vontade de viver. Um clima acinzentado pairava naquela residência. Na extremidade oposta da entrada estava, na pia, o filtro de barro e, sobre ele, um paninho todo desenhadinho em ponto cruz, uns elefantezinhos com bolas na ponta de cada tromba. Botou o copo debaixo da torneirinha e ficou a ver navios. Nada. Nem uma gota. Neca de pitibiriba. 

Na geladeira, nada também. “Ninguém teve coragem de colocar água na maldita da cabaça?”, bufou com a garganta seca. O Geraldo, seu marido, lia as notícias moribundas do jornal da manhã com uma cerveja suando no vidro da mesa de centro. “Mas tem água no filtro”, respondeu num tom maquinal. “Como que tem água se não sai uma gota, Geraldo? Faz semanas que isso vem se repetindo, eu peço pra vocês não esquecerem da água, tá fazendo um calor dos diabos lá fora e tem dia sim e dia não que eu chego e tá sem água pra beber”. Sem mover o caderno do cotidiano da frente da cara, ele responde com a voz inalterada: “eu não quero falar sobre isso”.

Impotente, ela seguiu para o corredor. Bateu no quarto do filho e entrou para encontrar o garoto com o rosto inchado de chorar, esmorecido na cama. Ao ser questionado, o menino disse que queria estudar na sala pela boa iluminação do final da tarde, mas que foi expulso pelo pai. “Vou fechar aqui a cortina. Vai estudar no quarto que agora só pode estudar lá”. O filho disse que ainda insistiu, mas que rapidamente foi contido e expulso com socos e pontapés até o quarto. Isso não poderia ficar assim. Ela levantou num pulo e embarafustou novamente pelo corredor até a sala. Lá, o Geraldo continuava impávido com sua leitura noturna. Ela bradou, xingou, questionou onde já se viu tratar estudante assim com tanta truculência, um jovem que só queria boa luz para seus estudos. “Mas ele está lá estudando, não está?”, questionou um Geraldo pacato. “E eu não quero mais falar sobre isso”, finalizou.

Ela pediu a chave do carro com as mãos tremendo. A voz já embargada parecia ficar bloqueada entre os dentes cerrados. Queria a chave e levaria o filho com ela. “Não vai adiantar, o portão ainda está com o cadeado emperrado”, disse o Geraldo. Há meses a tranca engoliu um pedaço da chave e nunca foi trocado, nenhum chaveiro foi acionado, nada. Não havia transporte e o Geraldo disse que não queria falar sobre isso. Para ele, tudo parecia ser resolvido com silêncio.

Ele dobrou o jornal, pousou o periódico no sofá e pegou a cerveja com a lata molhada para mais um gole. “Esses caras lá em Brasília. Que bando de sem vergonhas, hein?”.

Jader Pires