A ressaca

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Com olhos de ainda ontem, acordou e levantou bem as maçãs do rosto evitando, assim, a entrada de toda a luminosidade que vinha de fora do quarto. E que festa, a noite anterior agora lhe trazia a sensação de quilos a mais na cabeça e parecia ter chupado a corrente do portão com aquele gosto de ferrugem na língua.

Aniversariou e, como já havia se tornado costume, quase um princípio, chamou os amigos para comemorar a data em casa. Nada de bares e aquela coisa complicada de comanda junta e separada, nenhuma daquelas boates da noite, uma escuridão propícia para outros assuntos ilícitos e intransfiríveis, mas não para abraçar os bróders, jamais para ver a vida passando diante dos olhos. Esse tipo de afeto necessita de muita luz, e era tudo o que ela não desejava na manhã seguinte.

Empurrou o corpo para fora da cama decidida a bater a porta, mas ouviu um som áspero do lado de fora, um ralar de coisa, uma roçada conhecida, mas que ressoava como surpresa naquele contexto. Era para ser um dia de derrota, acordar tarde, mandar o namorado ir buscar na feira um litro de caldo de cana, única refeição possível até pelo menos cinco da tarde, se arrastar pela casa silenciosa até que o equilíbrio natural das coisas disponibilizasse ânimo para seguir, isso porque, quando se aproveita em demasia em determinado momento, vem o universo e toma de volta assim que possível, nem que seja à conta-gotas no domingo.

Mas em vez disso, escutava o vai e vem da vassoura pela sala e na varanda, o abrir e fechar da torneira na cozinha. Saiu do quarto e tropeçou num montinho de sujeira. Mais na frente, garrafas de cerveja long neck enfileiradas e dispostas dentro de uma grande caixa de palelão. Os pratos, que antes portavam cadavéricos salgadinhos que sobraram da festa agora relaxavam na água higienizada da pia. Pegou o celular em cima da mesa e constatou: ainda era domingo. O cara da empresa de arrumação que o prédio indica para quem precisa de diarista só viria na segunda-feira e por um segundo cogitou estar atrasada para o trabalho depois de varar o resto do final de semana ainda bêbada.

Podia acontecer.

Mas era só o namorado botando as coisas em ordem. Voltando os móveis no lugar, tirando o grudento do piso da varanda com sabão e esfregão. De bermuda e sem camiseta, suava bem para purificar aquele pós-festa. Claro que sua primeira reação foi perguntar ao companheiro o porquê da ajeitação, se foi cobrado de cada convidado justamente o mínimo rateio para o pagamento da limpeza. “Tô só tirando o grosso. E o cara que vem limpar aqui vai achar que a gente é o quê? Um bando de porco? Não senhora”. 

Ela botou os óculos escuros e foi à feira.

Jader Pires