A lei que vale

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Eu queria escrever um pequeno conto distópico em que o cara se levanta, normalmente, como se levantava nos dias anteriores, olhos meio colados do sono pesado, o barulho da água do chuveiro batendo nas costas pra começar a despertar, tomando seu café enquanto a organização das planilhas que precisaria preencher no escritório já estivessem sendo programadas. Eu ia escrever também que ele iria sair de casa e pegar seu carro, como pegava nos dias anteriores, e que iria avançar rua acima enquanto a atenção estava no celular, tentando conectar o bluetooth comando de bordo do veículo para selecionar uma playlist de música eletrônica e que, antes que pudesse completar o upload, que frearia bruscamente com o automóvel centímetros antes de bater no carro da frente, o que, claro, ele pensaria ser uma baita sorte.

Daí eu iria contar, enquanto escrevia, que seu fortúnio viraria fatalidade ao perceber, saindo de ambas as portas à frente, dois homens vestindo cinza, com armas em punho e apontadas para ele. Que eles estariam gritando “sai do carro, sai do carro” enquanto ele deixava o aparelho de telefone cair das mãos entre o vão do freio de mão e o banco do motorista. Iria descrever que ele estaria, óbvio, morrendo de medo da abordagem ríspida e inesperada, que acharia se tratar, antes de mais nada, de algum tipo de assalto, mas que iria percebendo enquanto eles se aproximavam ainda aos berros de “sai do carro”, que os dois homens estavam com as roupas iguais e que, no peito de cada um, havia um símbolo que ele pensava ser, numa primeira olhada assustada, um balão ou espécie de olho, mas que identificaria, quando visto mais de perto, ser um formato de peixe, todo prateado.

Disso, creio eu, vocês já imaginariam o resto. A apreensão e o sacode, a truculência com que ele seria levado a um conselho que, rapidamente, o colocaria como réu e, em minutos, culpado por algum crime contra a cristandade, um absurdo para o comportamento de quem segue os preceitos da bíblia. Ele, obviamente, ponderaria a seu favor a possibilidade de escolha, fosse ela sexual ou comportamental, de poder ou não comer determinados tipos de alimento ou trabalhar no dia que bem entendesse. Tá aí. Eu poderia escrever que ele estaria saindo para um evento, para alguma festa que ele tinha organizado num sábado, pra tirar um troco a mais, que seu talento como eletricista havia facilitado a organização de festa com luzes e som, que fazia isso por hobby e para somar no orçamento da casa e que, com isso, seria pego no crime de trabalhar aos sábados, dia sagrado. Ele ainda tentaria puxar pela memória que achava, da infância, que era o domingo o dia sagrado, que o sábado era reserva tida pelos judeus, e daí ele escutaria todo um argumento com base em Marcos, 2:27 e 2:28, em Êxodo 20:8-11, e, Gênesis 1:26, 27 e em João 1:1-3, todos eles dizendo que o Sábado é bíblico e que faz parte da lei de Deus.

Ele, ainda atordoado pelas pancadas, mas ainda mas ironicamente usando de sua fé, afirmou que não havia nenhuma lei na constituição brasileira que o impedia de trabalhar no sábado. E então, para finalizar, eu colocaria outro pedaço de tempo e espaço, que chegariam até ele em forma de memórias, dos últimos eventos em que pessoas religiosas tomaram não só o poder, mas influência nas diversas camadas da sociedade, que os dias foram ficando mais estranhos com conversas acaloradas em relação às leis de Deus, brigas na rua por conta de convicções hieráticas, as manobras para apaziguar o calor populacional, as novas regras. Então eu queria, escrevendo esse conto ficcional, que a narrativa voltasse ao homem sentado no banco dos réus enquanto ele repetiria junto com seu inquisidor: “Bíblia sim, constituição não”, a regulamentação máxima vigente. O acusador repetiria a frase, agora com o conselho junto. “Bíblia sim, constituição não”. E o acusado, já sabendo de sua desgraça, olharia em torno e veria todos os presentes, advogados, conselheiros, juri e plateia, todos repetindo em coro: “Bíblia sim, constituição não. Bíblia sim, constituição não”.

Pra arrematar, eu teria escrito, ainda, que enquanto ele estivesse atrás, no camburão, algemado e sendo transferido, ele passaria com os vigias por um bairro nobre da cidade onde pessoas estaria trabalhando em lojas de roupas chiques e joias. Ele perguntaria se aquilo não seria pecado e, consequentemente, delito segundo o novo dogma criminal, eis que, lá da frente, o guarda diria: “Aqui é diferente de lá, amigo. Não é assim que funciona”.

Eu queria ter escrito tudo isso, mas, quando dei por mim, percebi que não estaria escrevendo uma distopia, mas uma realidade bem próxima:

Porcalhões picham túneis no Rio com 'Bíblia sim, Constituição não';

Abordagem nos Jardins tem de ser diferente da periferia, diz novo Comandante da Rota.

Daí não seria ficção, né.

Jader Pires