O azar
“Caralho, que zica!”, chegou berrando ao entrar na sala com a cara chupada para dentro, toda enrugada, uma mistura de repulsa e vergonha. Caminhando rápido por entre as mesas do escritório, sentou-se esfregando as mãos de cima para baixo na roupa do corpo, como se quisesse se purificar a qualquer custo.
E começou a contar da sua infelicidade do dia. Acontece que ele chegou mais cedo no trabalho para poder terminar a apresentação junto com seu chefe para o evento com a diretoria sobre possíveis caminhos para as finanças do próximo semestre, sempre um encontro importante que movia todo o andar e levava horas de atenção minuciosa para que tudo fosse passado do jeitinho certo pra que todos os grandões da empresa ficassem contentes e seguissem com seus projetos. Claro que o chefe chegou atrasado e o ppt foi feito às pressas, mas com muita dedicação e muitas gotas de suor na testa. Faltando meia hora para a reunião, uma das diretoras, a que eles mais queriam agradar, anunciou que não poderia participar por conta de uma saída profissional de urgência. Com isso, também não poderiam usar a sala mais completa do andar que só pode ser utilizada com a presença dela. Murcho, sem saber se dariam prosseguimento com a cerimônia sem a pessoa principal ou se cancelavam depois de tanta correria e arrumação.
Foi lá ele esperar o elevador para avisar o chefe da má notícia. Mas como esses ascensores inteligentes demoram a beça e eram só dois andares de diferença, preferiu cobrir o trajeto pelas escadas. Ao chegar no nono, cruzou com uma moça que trabalha no andar debaixo. Ela se virou rapidamente pra ele, com os olhos arregalados, mas sem dizer nada. Ele achou estranho e, apressado, apenas acenou para ela com a cabeça em sinal de “oi”, mas, ao dar de costas com a menina, sentiu o odor pútrido que tomou conta das escadas de emergência. Era um bodum azedo que parecia penetrar direto pelos olhos fazendo-os arder uma dor cítrica, uma amargura de deixar as pernas moles.
Foi feia a coisa. “Que azar”, repetia ele, “que azar”. Passar ali bem na hora que ela soltou. Bem naquela hora.
Voltando alguns minutos, no oitavo, ela chegou dez minutos mais cedo por pura sorte se chegar no ponto bem na hora que passou seu ônibus e descer as escadas do metrô no tempo certinho de chegar o vagão, vazio de tudo. Deu até pra sentar. Atravessou as ruas todas com o farol verde para pedestres e até o elevador estava no térreo indo certinho para o seu andar. Era um dia promissor, ao que parecia, já que em sua mesa tinha um chocolatinho que o paquerinha deixou na noite anterior, com um bilhetinho “minha mãe que fez. Ela adorou te conhecer”. Dia ensolarado, aquele feixe de luz gostoso bem no seu colo ao se sentar, e-mail da companheira dizendo que adiantou umas planilhas pra ela.
Ela não soube dizer se foi fato de o chocolate ter ficado debaixo do sol a manhã toda, mas foi questão de minutos após terminar de comê-lo que veio a primeira fisgada no estômago, um desalento, como se algo vivo estivesse, na desesperada sede de sobreviver, sair daquela situação. Não ia dar tempo de ir ao banheiro, não podia se dar por vencida ali, precisava da distância exata entre sua sala e a o esfíncter fatigado. Mal passou pela porta da escada de segurança e foi. Aconteceu. Quente e derrotado. “Ainda bem que deu tempo”, pensou ela antes de sentir as pernas bambas de ouvir os passos apressados atrás dela. Virou-se com os olhos abertos demais, quando ele passou, os dedos apertados contra o corrimão, os músculos recém relaxados foram contraídos com toda a potência causando-lhe um desconforto que duraria o resto do dia.
Ele tinha que subir justo naquele momento? Um minuto depois ou um minuto antes e nenhum dos dois passariam pela situação.
Quem é mais azarado nessa história?
Eles nunca se perguntaram isso.