O contentamento

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Talita é aeromoça. Nunca ligou pra essas nomeações e não se importa se vai ser chamada de comissária de bordo, assistente, mocinha. O que importa pra ela é a sensação de liberdade. Ela se sente única quando coloca o cinto de segurança contra a barriga pronta pra voar. Adora ouvir o sotaque forte sempre que algum gringo tenta falar seu nome. Já foi várias vezes para a Europa e Estados Unidos, "mas ainda não deu para fazer a rota do Kerouac". Talita adora livros e tem como seus preferidos os de viagens. "É muito bom sentir a experiência de estar em muitos lugares. Me sinto várias mulheres ao mesmo tempo". Ela conhece gente do mundo todo e não quer namorar tão cedo pra não ficar entre a saudade e a vocação pra viajar. Talita dificilmente é encontrada por aí sem fazer nada, dando sopa.

Marcos é executivo. Trabalha em uma multinacional e adora reparar no corte dos costumes de todo mundo que passa por seus olhos durante o dia. Tem dezenas de gravatas vermelhas, diz "que sugerem liderança". Ele entrou na corporação sonhando em um dia ser CEO e sonha com todos os confortos que uma vida de trabalho árduo e arrojado pode oferecer. Chegou a pesquisar o preço de uma banheira que era ativada via celular, pra que ele pudesse sair do escritório e chegar em casa com sua jacuzzi de luxo pronta pra massagear seu corpo e seu ego. Mas nunca compraria tal regalia sem antes adquirir o par de anéis que selarão seu compromisso com Flávia, sua atual namorada. Marcos pensa em dar tudo do bom e do melhor pra sua futura noiva, começando pelas alianças que serão forjadas pelo designer que ela disse ser, de longe, o melhor no ramo. Ela não sabe que ele pretende fazer-lhe uma surpresa ainda esse ano.

Rubens é cadeirante. Nasceu gozando de boa saúde, mas sofreu um acidente já na fase adulta que o deixou sem o movimento das pernas. Já a boca, essa não sabe muito a hora de parar. Bastante opinativo, não vê problema algum em ter que se virar numa cadeira de rodas, mesmo no Brasil. Sabe das dificuldades, mas luta sempre com sorriso na cara e uma frase boa na ponta da língua. Rubens tem talento pra ser ator. Sabe que nunca o será, por conta de sua limitação. Não que não possa atuar, mas sabe que obviamente só faria papel de cadeirante. Transfere suas energias pro papel, em forma de peças de teatro. Sabe que não vai pagar todas as contas de casa com o teatro, mas se esforça pra fazer o que gosta. Vive repetindo a frase "se eu não fizer, quem é que vai fazer?" e adora dizer que "sempre que entro num teatro, sinto uma vivacidade nessa coluna cansada". Rubens é mulherengo e está sempre se despedindo acompanhado. Não quer saber de enrosco até passar dos trinta.

Três crianças que brincam em três situações distintas, mas atrás da mesma coisa. O contentamento. Que nem você, leitor. Que nem eu, escritor.

Daniel Larusso