O coveiro

071.jpg

Parecia cola. Acordar cedo já era rotina para o Samuel, mas, queria o destino que fosse assim, nunca lhe foi agradável. Era daqueles que, se pudesse, levantava só na hora de sentar-se na mesa para o almoço. Mas a vida havia dado para ele a profissão de coveiro, então tinha que estar de pé mal o sol tinha despontado no horizonte. Por isso a batalha matinal de ter que abrir os olhos contra a vontade deles que, teimosos, continuavam cerrados como se presos com algum tipo de grude.

Morava nos fundos do Cemitério das Almas, ele e o Silvio Santos, o cão vira-latas que ele ganhou da tia avó, para que não ficasse sozinho em casa. Dizia ela que, caso alguma alma tentasse se desgarrar do caminho, o cachorro o avisaria na base do latido.

Foi o Silvio Santos que o despertou com umas lambidas na sola do pé, quando ainda estava escuro. Sentou-se no pé da cama como um prisioneiro que se senta no duro leito de pedra. Os ombros pesados, as duas mãos no rosto em arrependimento de ter se avivado. Mas a obrigação o chamava. Calçou os chinelos e deixou a experiência repetitiva do cotidiano guiar seu corpo até o chuveiro.

Tomou seu banho com os olhos fechados.

Samuel bebeu uma xícara cheia de café e só. O pedaço de pão que deixara no saco na noite anterior o Silvio Santos comeu ao puxar da mão dele num momento de descuido, quando pescou, ou melhor, foi fisgado mais uma vez pelo anzol do sono. Mas não podia se dar por vencido, não podia se dar ao luxo de retornar para a cama e mandar às favas seu dever. Sabia abrir buracos para enterrar mortos como ninguém, fazia isso com o pé nas costas e tinha seus métodos para otimizar o trabalho do dia. Mas, naquela manhã, não havia organização ou conhecimento de anos de ofício que poderiam ser utilizados para salvá-lo. Ele sabia muito bem enterrar pessoas, mas não dominava as habilidades para desenterrá-las.

No dia anterior, quando ainda era tarde e não noite, o delegado e mais dois oficiais de justiça foram procurá-lo para uma ordem judicial: teria que, em nome da lei, ajudá-los naquela manhã seguinte, “tarefa remunerada”, deixaram claro. Um criminoso confesso os levaria para a cova rasa onde estavam enterrados os corpos de três pessoas, fruto de uma chacina causada por briga entre famílias. Samuel precisaria desencavar os cadáveres com o cuidado para não causar nenhum desmonte para o trabalho da perícia. Já imaginando que precisaria enterrá-los de maneira digna logo depois, contou ele na cabeça, então, seis incumbências.

Por isso acordou mais cedo. Para deixar os buracos já abertos e prontos para receber os pobres coitados.

Samuel, na beira da porta de casa, rezou uma Ave Maria e um Pai Nosso pra acordar.

Jader Pires