O mendigo
Lembrou-se de quando jogava bola. Tinha as pernas tortas e era o que melhor driblava na rua dele, qualidade essa que lhe dava o privilégio de sempre ser dos primeiros escolhidos na hora de formar os times. Era magrelo e veloz, parecia um palito de fósforo recém-apagado quando corria e chutava certeiro para o gol feito com chinelos, cabeçudo e com uma fumaça saindo dela nos dias frios.
Ele odiava o inverno.
Foi numa noite de julho quando Júlio foi convidado pela primeira vez para ir fumar uma pedra de crack com os amigos. Dois dias antes, apanhou tanto do pai que ainda estava sem conseguir abrir um dos olhos e, ao se levantar, doía a base das costas e a parte de trás das coxas, locais que receberam chutes certeiros quando caiu no chão. Apanhar no frio doía ainda mais.
Nas noites mais geladas, Júlio gostava de dormir com a Sara, namorada que arranjou já quando dormia nas ruas do centro. Ela o ajudava a esquentar, puxava ele pelo braço até o pequeno conjunto de outras pessoas em situação de rua para que, juntos, fizessem alguma comida quente para suportar as baixas temperaturas. Ela gostava de usar um gorrinho rosa com o desenho do Piu-Piu bordado na dobra que ficava perto da testa. Quando ela foi embora, sem avisar ou deixar qualquer explicação, ele pensou que ia morrer.
Era uma dor que ele nunca havia sentido.
Bola, a bota do pai contra seus ossos adolescentes, o barato da pedra batendo logo na primeira puxada, o cheiro dos cabelos dela no gorro do Piu-Piu. Tudo junto, mensagens embaralhadas, memórias corridas, aperto no peito, a dor e o arrependimento. Seu corpo tremia e quanto mais tiritava, mais rijo ia ficando seus braços, as duas pernas.
Teve uma briga na rua entre dois outros mendigos, uma das tantas pelejas por causa de dívida. Quando tomou o segundo soco na boca do estômago, um deles caiu e ficou ajoelhado. A sara correu para perto porque queria ver a luta e Júlio foi atrás. Ela pedia “dá na cara dele, dá logo na cara dele!”. O homem que bateu então disse “isso não. Na cara não se bate nem em quem merece. A gente tá na rua, mas tem dignidade”. Ele se lembrou desse sermão enquanto se levantava todo molhado enquanto funcionários terceirizados da prefeitura avançavam com os jatos d’água. Sentiu-se humilhado por ser expulso de onde dormia dessa forma. Sentiu-se envergonhado de tremer tanto, de correr com o corpo endurecido, de ser enxotado passando tanta dor com os doze graus que estava fazendo quando tudo aconteceu.
Se lembrou de quando jogava bola e corria com as pernas tortas e a fumaça na cabeça. Se lembrou de ter apanhado, de ter caído no mundo do vício, de ter ido parar na rua, de ter sido amado e abandonado, de ver gente apanhando. Lembrou-se que era alguém, apesar de todos terem esquecido isso. Júlio lembrou-se que era alguém.
Chorou, ainda molhado, achando que só ele ainda sabia disso.