O meio-fio
Tem o bar em frente de casa, ele se chama Andorinha. Alguns cachaceiros mergulham os olhos em copinhos de água límpida que queima a garganta. Colecionam desapontamentos.
Do outro lado da rua, de onde estou, tem uma banca de jornal e, em frente, um casal de namorados gesticula alguma discussão sobre liberdade e ciúmes. Não dá para ouvir nada do que eles falam porque desponta da esquina o babaca que passa num Passat rebaixado com o som no último volume, no talo.
Da janela, a tiazinha com problema nas ancas reclama da barulheira enquanto, na outra esquina, o gordão que vende churrasquinho de gato é só sorrisos, já vendeu sei lá quantos vários espetinhos para dois amigos. Ele está prestes a levar um calote.
Daria até para se ouvir os calcanhares batendo na bunda se não fosse o babaca do Passat rebaixado com o som no último volume, no talo. Os dois pilantras correm com a carne entre os dentes enquanto as camadas de gordura do dono da churrasqueira vão se esvaindo em papas de suor na camisa azul claro. E nem toda a potência do batidão que atrapalhava o sábado poderia abafar o estampido do bofete que ela deu nele, a namorada que bradava com o namorado sobre saídas e ligações de gente desconhecida. Deu a troada e um adeus, foi-se embora.
É tudo isso que se vê daqui de onde estou, daí de onde vocês se encontram nesse momento.
E vocês estão vendo tudo isso do meio-fio, da sarjeta, da ponta da calçada, do lugar que não teve nem capacidade ou gabarito para ser fio inteiro, fio completo. E lugar mais democrático não há. A lona, o fundo do poço, o único lugar por onde todos passarão muitas vezes na vida, pois não há grana que salve gente alguma da derrota, do fracasso, do desassossego.
Eis o camarote do cotidiano.
É daqui, da beira da rua que se vê tudo, que se acompanha tudo, o lugar comum, o que pertence a todos, é da comunidade. Os textos desta nova newsletter são de vocês e todos estão em cada uma destas sentimentalidades. Você está brigando com a namorada e você está lá tomando esporro do namorado. É você quem passa com o som do carro no último volume e é você que reclama do barulho pela janela. É você que compra o churrasquinho da esquina e é você que acabou de dar pinote no cara da barraquinha de espetos.
Sintam-se à vontade para olhar, ver e reparar. Apropriem-se das palavras, das pessoas, da narrativa, dos sentimentos. Coloquem-se no lugar de tudo e todos e voltem para contar. Não vou convidá-los para ficar porque o meio-fio é de quem chegar e se sentar.
Agora a tia que xingava da janela desceu as escadas e abriu a porta que dá pra rua. Vai dar confusão.