O vento no ar

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Há dias que estou com o peito pequeno e os olhos pesados. O ar não me entra direito e, do pouco que vai, quase nada sai. Fico imaginando que esse ar viciado sobe nas minhas têmporas e encurrala meus globos oculares, forçando as pálpebras a fecharem. É. Tenho tempo de sobra pra pensar em besteiras como essa.

Já nem acendo as luzes quando chego em casa. Jogo a mochila e me sento na cadeira da escrivaninha enquanto desfaço as dobras da camisa após meses de reclamações da empregada, que tem um trabalhão danado em desfazê-las para lavar. Arranco a roupa e a atiro contra o monte de outras roupas sujas que sumirão como num passe de mágica quando a Arlete, a dona das reclamações, vier para resgatar o pouco de vida que ainda há nesse apartamento.

Chego sempre cansado. Muito. Mal tiro a camisa e já me curvo sobre a escrivaninha arranhada e sem cor, mas de apreço. Apoio os braços, segurando a testa com as mãos. Os olhos pesam, me esqueço de tirar os sapatos e a luz da rua entra tão tímida pela janela da varanda e tudo o que vejo são pouco mais que silhuetas. E é bem mais que suficiente pro meu interesse ínfimo para as coisas. A televisão não me interessa, o rádio me entedia, a comida não me desce e os livros me humilham.

Vou até a varanda para poder fumar (a Arlete também reclama do sarro de cigarro que fica na casa). Sento no chão mesmo, no canto oposto ao do vaso com uma planta qualquer que nunca fiz questão de saber o nome. Faço desse jeitinho porque a Arlete odeia que mexam na plantinha que ela cuida com tanto carinho. Acendo o cigarro que imediatamente potencializa a moleza e o cansaço. Tomo cuidado com as cinzas porque a Arlete vive dizendo que eu as deixo cair na varanda e esqueço a janela aberta e a sala amanhece toda cheia de birras e sujeira pisada.

Aconteceu de novo. Aquele lance de perder a noção. Lapso. Aconteceu de novo. Levantei inquieto pensando ter me tomado cinco minutos e vi que se passara mais de uma hora. Sempre acho isso estranho e perco ainda mais tempo imaginando como seria ruim se isso acontecesse no metrô. Termino esperando que isso não aconteça e a Arlete sempre diz que um dia ou outro é isso que vai acabar acontecendo.

Solto a primeira palavra desde que entrei em casa. “Merda”. De ficar ali na varanda, perdi tempo precioso que tinha para dormir. Porque meu sono é certo de chegar, mas bem volátil e, agora que ele se foi, provavelmente não voltará. E completando a festa, amanhã é dia de a Arlete limpar o apartamento.

Fico parado, em pé, apenas respirando fundo e irritado com o fato de que, agora que eu queria que os putos dos meus olhos desistissem e caíssem de vez, sinto-os degladiando bravamente contra aquele monte de ar cinza na porcaria das têmporas. Sinto a fumaça retomando lugar em meu peito pequenininho que se encolhe ainda mais. Os olhos não. Se encontram esbugalhados e orgulhosos. Estou mais cansado e mais acordado.

Já tentei com remédios uma vez, mas não deu certo. Por isso que a Arlete, a mulher que limpa aqui a minha casa, fica sempre enchendo meu ouvidos. Se os remédios tivessem dado certo, eu não ouviria chamada de atenção alguma, nem dela e nem de ninguém.

Dessa vez vou fazer tudo do jeito certo. Li em algum lugar (ou vi em algum filme que passou de madrugada) que o cano tem que estar dentro da boca pra dar certo. Se a gente coloca o cano embaixo do queixo ou nas malditas têmporas, pode ser que dê errado eu faça apenas sujeira e vergonha. E, claro, é a última coisa que quero que aconteça. Então vai ser dentro da boca. O ruim é o gosto do aço gelado.

Ah, a pena é que amanhã cedo eu não vou estar aqui pra ver a cara da Arlete quando ela vir isso tudo.

Jader Pires