“Meu pai não tá sabendo, não" | Do Amor #73

Ejetou-se da poltrona sem mais nem menos, como costumava também fazer algumas vezes no trabalho, quando os suores gelados da claustrofobia lhe acometia. Era preciso, nesses impulsos de querer horizontes, ir para a rua recuperar um pouco do fôlego com as duas mãos apoiadas nos joelhos. Juntou a necessidade de sair de casa com o desejo de vê-la mais uma vez. Entrou no carro, abriu as janelas das duas portas buscando refresco e acelerou, para sentir o vento lambendo-lhe a cara.

Setenta e quatro quilômetros mais novecentos metros adiante e chegaria à cidade dela a tempo de chamá-la para tomar alguma coisa, ficarem de mãos dadas em algum barzinho. Assim que passou das duas rotatórias e entrou na rodovia, lembrou-se que deixou no porta-luvas a pen drive vermelha que ela lhe deu. Meses antes, em uma conversa informal na faculdade, se conheceram e ficaram de trocar canções que gostavam, um jeito adolescente que encontraram para se aproximar. Passou algumas canções da banda Los Hermanos e do cantor Cícero e foi direto para a faixa dezesseis para ouvir o Marcelo Camelo, sozinho, repetir “meu bem, saudade é pra quem tem”. E lá ia ele matar a sua. Cantou a canção em voz alta e voltou para escutá-la novamente, dessa vez sem prestar atenção na gravação, mas recordando das vezes que escutou ela cantar com o violão a tiracolo em apresentações íntimas e exclusivas. Só para ele. Suspirou e esfregou as costas dos dedos na parte de baixo da barba ruiva de onde se podia ver escapar um sorriso largo e branco. Apertou um pouco o pé direito contra o acelerador e sentiu o carro avançar.

Exatos cinquenta e nove minutos depois ele entrava na cidade. Parecia que lá estava ainda mais quente e a falta de vento fazia as árvores parecerem dormir um sono pesado, imutáveis nas calçadas. Parou em um posto de gasolina e, enquanto matava a sede do tanque de gasolina, mandou mensagem dizendo que estava escutando Camelo e pensando nela. Ela respondeu, já sabendo até de qual música ele estava falando, “Todo o teu amor eu vi de longe”. Ele a havia fisgado como queria. “Pois ainda bem, porque eu estou agora aqui pertinho, pertinho”. Ela respondeu com um ponto de interrogação, querendo juntar a última peça do quebra-cabeças e ele fez o convite. “Tô aqui pertinho. Vou te buscar pra gente sair”.

Na casa dela, há muito que todos dormiam e a única movimentação lá dentro era da luminosidade do celular que dançava enquanto ela apertava os dedinhos contra a tela para responder aos enigmas dele. Quando recebeu o “tô chegando na sua casa”, foi ela quem saltou da cama com todos os mais e foi até a janela da sala. De lá, montando guarda feito soldado zeloso, viu os faróis do carro dele clarearem sua garagem e estacionar antes da guia rebaixada. Sentia que a potência com que seu coração havia disparado pudesse acordar seus pais e apertou o celular e as duas mãos contra o peito. “Tá maluco? O que você tá fazendo aqui?”, ela mandou com os olhos alternando a vigilância entre a janela, o app de mensagens com três pontinhos indicando que ele estava escrevendo algo e o corredor que dava pro quarto dos pais. “Ué, eu vim te ver. Vem? Vamos comer alguma coisa”.

“Eu não posso sair de casa”, respondeu ela lacônica como nunca foi, deixando na boca dele um gosto de estranhamento. “Mas como assim? Você tá doente? Tá precisando de alguma coisa? Quer que eu vá buscar algo pra você?”, ele respondeu. “Não”, ele leu, chegando em forma de balõezinhos com a foto dela, “eu tô bem. É que meu pai... Ele não tá sabendo, não”. Ele coçou a nuca. “Seu pai?”. “É, meu pai não sabe que eu namoro. Eu não posso sair. Ele não vai deixar eu ir em lugar algum a essa hora e com você”, foi o que ele leu em seguida. E passou a desenvolver um cacoete instantâneo de baixar os olhos para o celular que estava em seu colo e subir os olhos na altura da rua, onde as luzes amareladas dos postes iluminavam o cenário inanimado. Dentro de casa, ela fazia o mesmo, só que ora subindo as sobrancelhas para ver melhor o que se passava do lado de fora da janela, ora apertando os olhinhos para enxergar o escuro do corredor, na expectativa de alguém passar e perguntar que diabos ela estava fazendo na sala àquela hora no breu. “Vai embora”, ela mandou. “Amanhã a gente conversa”.

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Mas o carro não saía do lugar. Lá dentro, ele tentava formular argumentos na cabeça para que ela saísse, para que eles conversassem. Colocava sua racionalidade na frente das emoções assustadas dela e, naquele recorte, fazia para ele todo o sentido. O que não tinha cabimento, imaginava ele, era uma garota nos seus vinte e tantos anos agir como se fosse uma debutante sem poder de voz em casa, que carecesse de permissões paternas para agir. Contestou a própria indubitabilidade que nutria sobre o amor dos dois, se era prudente alguém como ele lidar com uma situação pueril como aquela, se não seria melhor tirar o cavalinho da chuva e partir para outras aventuras que a de voltar a depender de autorizações para namorar.

E zarpou. Virou a chave na ignição, andou umas três quadras e parou de novo. Saiu do carro, as duas mãos nos joelhos para retomar a respiração, para deixar secar a transpiração glacial que teimava em brotar na testa. Bateu as mãos nos bolsos e não encontrou o celular. Enfiou metade do corpo pelo vão do vidro aberto na porta do motorista e, ainda nessa posição, voltou a se comunicar com ela: “Mas nem se eu falar com ele? Nem assim dá pra você sair?”. Ela ainda montava guarda na janela. “Já tá todo mundo dormindo aqui. Ia ser pior! Imagina, acordar meu pai pra se apresentar pra ele”. Ele coçou a barba com as costas dos dedos e bufou pra fora do peito um pouco de frustração. “É que eu tô com saudade…”, ele mandou. “Eu sei, meu bem, eu também tô. Mas é como é, né. É pra quem tem”, ela respondeu. Ele voltou a sorrir, branco e largo. “Tá bem. Meu amor é teu mesmo”. Ela mandou um coraçãozinho dourado de volta e prometeu que iria arranjar para o quanto antes o encontro dele com o pai dela, já com a conversa feita sobre o namoro dos dois.

“Se é amor, a gente espera, né”, disse ele em voz alta antes de entrar de volta no carro.

Jader Pires