É amor? Quando a reação vira violência | Do Amor #68

"Eu não vou negar que sou louco por você... Tô maluco pra te ver...". No apartamento do andar de baixo, o Zezé dava condições para que ele forçasse um pouco a fechadura dourada da porta e conseguisse, enfim, entrar. Subiu os oito andares pelas escadas, pra não dar de cara com ela. 

La dentro, quatro cômodos mobiliados com o esmero do primeiro casamento, espelho grande e limpo na parede, luminárias com cristaizinhos e tapete colorido, cozinha toda equipada com eletrodomésticos prateados, o sofá retrátil que eles namoraram por meses sem saber de iria caber ou não junto com a luminária na sala mais apertadinha, decisão tomada em conjunto para que um segundo quarto já estivesse pronto para uma possível chegada de bebês num futuro próximo. Mas, antes de concretizarem o sonho da festa de casamento, as constantes desavenças foram cercando-os dos mais diversos receios e, assim, o que deus uniria em uma só carne, fartou-se antes mesmo de ser marido e mulher.

Passaram as semanas seguintes encomendando a culpa um nas costas do outro, criando, quando juntos, um ambiente de insalubridade emocional, confissões belicosas, insultos e lorotas para incendiar, no outro, a fúria. Não dava mais para continuar. 

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Mas havia a burocracia com o que sobrou. Tinham de resolver o que fariam com o apartamento e com tudo o que estava lá dentro, precisavam selar de forma amistosa a partilha de bens, deixar o arranca-rabo para depois dos mecanismos legais. E marcaram de resolver isso no imóvel.

Entrou pé ante pé com a competência de uma bailarina para que seus passos não fossem ouvidos caso alguém já estivesse zanzando em um dos quartos ou no banheiro. O "Você é minha doce amada" vazava abafada do andar de baixo enquanto ele fazia a checagem de que estava mesmo sozinho no ambiente, tendo de fato chegado antes do combinado para ter um tempo para si. A dupla esguelando o "a paz que eu preciso pra sobreviver" ficou mais inteligível quando ele ligou o rádio e a canção passou a passear também no apartamento de cima, o que ele se encontrava cercado de solidão.

Alisou os botões acinzentados do aparelho, sentiu nos dedos a rugosidade da gradezinha de proteção dos auto-falantes, segurou a engenhoca digital entre os dedos atirou-a com toda a força empregada no braço direito contra o espelhão, destruindo ambos no choque. Com a boca formando um arco em cima do queixo e as narinas ampliadas nas fendas para sair todo o ar de uma vez, repuxou os músculos da coxa para cima e, com a sola do sapato, empurrou a mesinha de centro que espatifou a janela da varanda.

Virou a mesa com as mãos, rasgou as cortinas enquanto urrava e, com os dois braços, empurrou tudo o que estava na pia da cozinha. "Um louco, alucinado, meio inconsequente". Praguejou o inferno com a boca espumando baba, desafiou todos os santos com as mãos fechadas e o punho em riste, chacoalhando todo o corpo, tirando todas as lâmpadas com a ajuda de um banquinho de madeira e atirando-as no chão, cuspindo no sofá retrátil, dilacerando o tecido dos braços e das almofadas com uma faca de cortar pão, caindo sentado de exaustão no corredor perto do banheiro. "Um caso complicado de se entender".

Quando a polícia chegou, tava riscado à chave na entrada da porta: "É o amor...".

Jader Pires