Não tem nada errado, mas não tá certo | Do Amor #70

Como vinha distraída, parecia que sua mão estava pedindo ajuda ao atravessar o vão das portas do elevador. Com a outra, dividia as tarefas de segurar o saco de pães e responder ao marido que já estava de volta, no saguão do prédio, e que não daria para comprar a geleia que ele havia rogado tardiamente. "Bom, se não tem outro jeito...", ele respondeu. Enfiou o telefone no bolso e, quando foi apertar o doze, viu que a luz já estava acesa e que o vizinho do mesmo andar se encontrava lá dentro com ela. 

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Ele segurava umas sacolas de mercado. Deu bom dia, perguntou como ela conseguia já estar ligada em tantas tarefas ao mesmo tempo logo cedo. Ela comentou que gostava da surpresa matinal de sair ainda no escuro e voltar, dez minutos depois, já no claro. Ele sorriu. "Realmente, nada como uma boa surpresa logo cedo". Ela colocou os olhos no chão e parte dos cabelos atrás da orelha enquanto notava que ele reparava nela pelo reflexo do espelho. Tornou a olhar para ele, colocando a coluna no lugar e fechando um dos olhos, como se pedisse sigilo: "sabe qual é o meu segredo? Depois eu volto pra cama e me dou mais vinte minutinhos. Só depois vou fazer minhas coisas para ir trabalhar. É a melhor parte do meu dia", e terminou ameaçando colocar o dedo indicador na frente dos lábios em sinal de discrição, mas freando o movimento pouco antes, demonstrando confiança no rapaz. E para quebrar o tom de brincadeira seguiu conversa, se estava tudo bem com ele, e ouviu um sim como resposta, que ele entraria mais tarde no trabalho por conta de uma reunião e queria aproveitar para tomar um bom café da manhã, reforçado e com calma. Levantou com uma das mãos a sacola que indicou conter um pacote de café especial e a convidou para experimentar, caso ela quisesse melhorar o despertar. Ela agradeceu e disse que, quem sabe, num outro dia.

Chegando em casa, deixou os pães na mesa da cozinha e foi encontrar o marido que terminava de fazer a barba no banheiro. Passou as mãos no rosto liso dele e ressaltou nunca enjoar do cheiro daquela loção. Pediu um beijo e foi tirar a roupa para colocar de novo o shortinho que usou para dormir. Olhou-se no espelho, ainda com a roupa da rua, depois só de calcinha, e novamente com o pijama. Descalça, foi espreguiçando-se no corredor, esticando os braços no alto e pendendo as costas para um lado e para o outro. Na cozinha, encostou-se na pia e observou seu esposo fazendo coisas, abrir o pão, checar e-mails no celular, misturar o leite e o café no copo. Coçou a nuca, escutou-o falar de umas contas, reprovar a demora deles em decidir como farão com a festa de família no natal, perguntou se ele olhou pela janela para ver o dia nascer e ele olhou para trás, para a porta da cozinha, como se atravessasse o apartamento e enxergasse o cesto de roupas sujas, e comentou ter se lembrado que esqueceu de botar para lavar a camisa que julgava importante para usar naquele dia. 

Sentou-se de frente para ele buscando palavras para convidá-lo a deixar as coisas do cotidiano de lado por três minutos e falar com ela com outra postura, mais aberta, mais atenta. Queria apenas falar de sensações, do gosto da comida, do ar gelado da janela batendo no ombro. Apanhou na cabeça essas frases, mas guardou para si. Procurou sorrir e saber se ele tinha gostado dos pães. "Se tivesse aquela geleia, ia ficar ainda melhor", ele comentou ao se levantar e dar um beijo nela. Se despediram na sala e, ao vê-lo sair, colocou a cara pra fora da porta para desejar-lhe bom dia. "Amanhã, sem falta, vai ter geleia", sussurrou depois que as portas do elevador já haviam se fechado.

Do outro lado do corredor, de dentro do outro apartamento, o cheiro do café recém-preparado veio correndo avisar que tinha alguém atrás dela. "E aí? Vai dormir como sempre ou quer tentar alguma coisa nova?", inquiriu o vizinho. Ela virou o pescoço para o elevador fechado, voltou a rotação para o apartamento aberto. Recolheu a cabeça de volta para a sala, olhando para o seu "eu" de regatinha e descalça. Cogitou pegar a roupa que estava usando quando se encontraram, mas seus pés não saíram do lugar. "Quer saber? Foda-se, né", soprou baixinho para nem ela mesma escutar. E foi. Sem calçado e sem tédio. Ergueu a mão, como se pedisse para ser puxada, e os dois entraram.

Ficou lá fora só o corredor, vazio, a porta fechada do elevador e o resto do mundo todinho.

Porque a gente ama se provar.

Jader Pires