Queria ser "puta" no Rio de Janeiro | Do Amor #44
A boca de Aurélio era maior que sua sensatez. Bastava a segunda pinguinha descer goela abaixo e lá estava ele contando atrocidades no Andorinha, bar frequentado pela malandragem do bairro, um reduto de aposentados e desocupados. Sapateiro, largava o balcão do negócio com Firmina, sua esposa. Dizia que ia atrás de material para o conserto e parava no Andorinha pra "calibrar".
O problema é que, sempre que a cachaça entrava, a verdade saía. Não exatamente assim no caso de Aurélio, o que ele botava para fora era seu caráter duvidoso, quando passava a contar mentiras sobre aventuras sexuais que existiam apenas na sua cabeça. Relatava trepadas e fodas, encontros furtivos e sexo que fazia ao acaso, quando o destino lhe sorria e alguma desconhecida simplesmente decidia levá-lo para algum terreno baldio ou então quando alguma cliente gostosa do bairro o empurrava para os fundos da sapataria. Teve até uma vez que foi fazer a entrega na casa de uma senhora granfina e "ficou pro jantar" em que foi ele que papou a patroa. Era putaria atrás de putaria, só falava de sacanagem, aventuras amorosas, mentiras eróticas, um tal de sonhar acordado esperando que todos no bar entrassem no mesmo embalo.
Voltava para casa no finzinho da tarde, naquele mesmo movimento de abrir a porta aos tropeços cobrando da mulher o jantar, reclamando da filha que não limpa a casa direito, chamando-a lá do quarto para lhe passar sermão. Selminha já estava com dezoito anos, mas para o pai ela sempre seria tratada feito debutante, uma menina que não podia sair de casa e jamais iria namorar. Aurélio proibia a pequena de passear com amigos fora de suas vistas. Era apenas para ter conversas em frente à sapataria ou visitas dentro de casa, sob a supervisão da mulher. Claro que, nesse trato, não era permitida a chegada de garoto algum. "amiga é coisa de menina, homem gosta mesmo é de chegar perto pra comer alguém", ele dizia sem o mínimo de pudor.
E a Selminha nos últimos tempos era só calores. Brincava consigo até altas horas da madrugada pensando em colegas do bairro, nos meninos da igreja, nas amigas da rua. Todos eram bem vindos em seus devaneios, adorava brincar com festas na cabeça cheias de gente disposta a trocar e trocar e trocar... Passava de mão em mão experimentando e ganhando experiências. Colecionava delícias que não podiam mais para ficar só no pensamento.
Era mais ou menos onze da matina num sábado quando despontou na entrada do Andorinha a sombra pontiaguda da Selminha marcando o chão alaranjado pelo sol forte. O pai já estava lá há horas, com a desculpa de que estava indo à banca buscar o jornal. Depois de engolir mais um copinho de caninha, ele seguia com o relato da vez em que seguiu conversa na rua com uma babá depois de pegar o brinquedo caído na rua da criança que ela tomava conta. Descrevia como se levantou com o boneco em uma mão enquanto a outra deslizava pelas pernas da babá, a pedido dela, até entrar por debaixo da saia sem que ninguém na rua visse.
Nisso a Selminha, sua filha, cortou o assunto e tomou a atenção do bar todinho. A jovem apareceu só de calcinha na frente da birosca, para quem quisesse olhar. Chamou Aurélio de mentiroso (não o chamou de pai) e nojento, indagou-o sobre sua mulher, cuidando da casa e da sapataria, enquanto ele contava vantagens fingidas no boteco. Perguntou como é que ele podia gostar tanto de uma coisa e não quisesse que sua filha também experimentasse. Gritou que não era mais virgem, que já tinha transado no banheiro da escola na época de colégio e que gozava mais que ele, todas as noites, sozinha enquanto ele roncava bêbado no sofá da sala. "Olha, todo mundo", disse ela, "olha como eu sou gostosa! Vocês não acham uma maldade ninguém poder se aproveitar esse meu corpo assim? Que eu não possa aproveitar que sou assim pra poder sair com quem eu quiser?". Os malandros do bar concordaram com ela em silêncio, tentando resguardar um mínimo de respeito ao dono da sapataria que assistia atônito a tudo o que se passava. "Pois vocês querem saber? O corpo é meu e faço dele o que eu quiser! Eu vou embora dessa casa e vocês todos vão ouvir falar de mim! Vou virar puta! Eu vou ser a melhor puta dessas redondezas e vocês todos vão me adorar!". Quem passou em frente ao Andorinha naquele dia e naquela hora ouviu um bradar de urros e uivos, todos entusiasmados com o que estavam presenciando. Todos menos um catatônico Aurélio que, acostumado a falar pelos cotovelos, engoliu todas as palavras e ficou teso vendo sua filha seminua fazendo a alegria dos alcoólatras da vila.
Ela foi-se embora e nunca mais voltou. Saiu de calcinha mesmo, rua abaixo, sem levar nada debaixo dos braços. Dois dias depois, Aurélio teve um derrame na sapataria e ficou com o rosto paralisado do lado esquerdo, uma boca murcha para baixo e o trauma de imaginar sua Selminha transando com tudo o que era vagabundo em algum lugar da cidade.
Na verdade sua filha foi para o Rio de Janeiro e se tornou gerente de uma repartição. Não virou puta, mas aproveitou a nova liberdade para provar, testar e saborear cada uma das coisas que tinha em mente quando se divertia sozinha em seu quarto, não por necessidade, mas pelo simples fato de que queria e, ora bolas, podia.
Do amor, a vezes a gente só tem que gostar da gente mesmo.