Ele queria chegar no outro cara, mas não sabia bem como | Do Amor #84

Só a presença dele já parecia encher o bar inteirinho. Libriano, expansivo e aparentemente dono de si. Mas, por dentro, o desalento de se sentir incapaz de dar o primeiro passo. Já estavam há dias se olhando com mais disposição, depois que a amiga do RH pagou de casamenteira acidental e comentou de um pro outro e de outro pra um, que ambos eram, que ambos estavam no jogo. Festa acontecendo, um primeiro abraço e, num segundo momento, outro enlace e ele sacou que a brincadeira estava acontecendo. Engraçado que, em conversas posteriores, o outro sempre diz não ter colocado intenções no aconchego, mas ele jura de pés juntinhos que sentiu as tais faíscas explodindo em volta deles. Bebidas, brincadeiras e risos eram distribuídos, mas ainda havia uns pequenos modos de festa da empresa, uma linha fina que não queriam ultrapassar.

Tudo muito legal, mas ainda bem que acabou cedo. Os mais fortes seguiram o ritmo da bebedeira no posto da esquina. Líquidos na conveniência, mais conversa e zombaria. A dúvida. O engolir de palavras, de perguntas, de tentativas. Tantas chances. Ele ia contando na cabeça os pequeninos contratempos, remontando as frases que usaria caso chegasse no outro. Como abordá-lo? De que maneira poderia chamar alguém tão focado em cuidar da própria profissão a fazer algo que não remete em nada às incumbências do trabalho? Botaria a culpa no álcool? Tentaria tirá-lo de lá? Ficava se perguntando porque, dentre tantos caras no mundo, ele foi se interessar até dar coceirinhas justo pelo mais certinho deles? O mais quieto? O mais tranquilo? Rodava pelos papos dos amigos, batia com o dedo indicador no rótulo da garrafa de cerveja, denotando a sofreguidão dos que não botam para fora. E o outro conversando pausadamente, fazendo bromas, demorando para voltar do banheiro.

“Se eu tirar meu cavalinho da chuva, tudo vai ficar resolvido”, afirmou para si enquanto montava na cabeça sua desistência. Se não tentasse não sofreria, se não arriscasse, não se queimaria com um colega de trabalho, se deixasse tudo como estava, tudo seria como sempre foi. Respirou fundo, deixou sem perceber as sobrancelhas murcharem com o próprio desvalor. Mais uma vez, por querer tanto a ponto de não suportar uma negativa, deixaria de lado o próprio desejo em prol da normalidade. Seu estômago reclamou por isso e, para acalentá-lo, pegou mais uma cerveja e esperou todo mundo se organizar e concluir que era hora da saideira.

Beijos de despedida, rodinha se esvaziando. Era a hora do tchau. Chamou o Uber como se encomendasse a própria morte, toneladas nos dedos digitando sua localização. Enquanto aguardava a confirmação do carro no aplicativo, viu que o outro não estava fazendo o mesmo, só olhava para a rua como se buscasse seus pensamentos, como se estivesse tentando ver, lá na frente, o que faria daquela situação toda. “Vem comigo que te dou carona”. De repente ele percebeu que a frase ouvida saiu da própria boca, como num impulso, como se alguém que não ele tivesse tido aquela coragem de fazer o convite. Mas era ele mesmo. Foi. Restava esperar a resposta do outro, que veio mais perto com aquela serenidade toda que lhe era peculiar e a voz grossa e empostada recusando a oferta com palavras que claramente denotavam não uma rejeição, só polimento mesmo. “Para com isso, vem comigo que eu te levo”, de novo a voz falou sem que ele tivesse plena certeza que era ele dizendo tudo aquilo. “A gente faz um caminho pra minha e a sua casa. Se precisar, a gente racha o caminho, faz dois pagamentos”. Outra vez declinou com aquela educação quase inerente à sua figura e foi então que um ultimato foi dado, para espanto mútuo: “Bom, você só não vai comigo se não quiser”. Bem quando o carro chegou. Se dissesse não, seria sem volta. Entraram juntos no banco de trás e o carro arrancou.

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Lá dentro, ainda receios. O silêncio do motorista e a dúvida se ia acontecer algo. A angústia de pensar uma coisa, mas falar outra. Papinhos. O outro deixando a prosa acontecer, deixando o anzol lá, boiando, sem morder. Mal sabia ele que o outro, de pesca, virou pescador. Enganchou com a mão a nuca dele, puxou tranquilo, como se fosse a coisa certa a ser feita, e o beijo, o encostar, a barba do outro na boca dele. A respiração do outro se misturando com a dele. O gelo e o calor. O ar, muito dele, entrava no peito e não saía mais, como se estivesse se afogando. A boca do outro foi a salvação. Boca-a-boca. Boca na boca. Se pegaram loucamente. “Foda-se o motorista”, ele pensava, “foda-se o mundo e foda-se o tempo”. Já não tinha mais abraço duvidoso naquele banco traseiro, nada de movimentos dúbios. Estava tudo posto. Nada mais seria o mesmo depois daquela viagem.

Eles já sairiam daquela carona não sendo mais as mesmas pessoas de antes da festa naquela noite. Depois daquilo era só um querer mais, um mais querer, um bem querer sem fim. O carro foi chegando na casa dele, para depois levar o outro. O carro freou. O silêncio. Ele. O outro. O motorista, inclusive o motorista, que deixou o veículo engatado e, ao tirar o pé do freio para aliviar, deu aquele solavanco que empurrou todo mundo pra frente. “A gente vai se ver de novo, né?”, ele soltou de sobressalto. “A gente ainda vai se ver muito”, disse o outro, com aquela voz grave e baixinha, antes de mais um beijo, agora de despedida.

Às vezes, o amor só pega no tranco.

Jader Pires