Quando o namorado terminou com ele, o pai é quem deu colo | Do Amor #107
Quem olhasse de fora ficaria irritado. A repetição era mesmo de enervar até os mais cômodos. Fitava a tela do computador, batia dedos em teclas aleatórias, reparava os dias na agenda ao lado, dava com o punho na mesa três malditas vezes, olhava para a janela e ficava a acompanhar com os olhos o movimento lúgubre das folhas na árvore, o dia acinzentado, o outono iniciando sua labuta.
Olhos na janela, dedos no teclado, murros abafados na mesa. A sequência se repetia e a cabeça pra lá de Marrakesh. Na verdade, sua mente estava empacada na noite anterior, que passou quase que em claro.
Seu filho estava sofrendo, um garoto de porte atlético e dentes bem alinhados que tinha, recentemente, recebido a carteira de motorista e estava há semanas andando com o carro da família quando, na noite em questão, o pai ouviu o estalo na garagem.
Desceu para ver e deu de cara com o veículo amassado no fundo da garagem, faróis quebrados, portão escancarado e o garoto dentro do carro, com o rosto enterrado no volante. Deu a volta já mergulhado em preocupações, abriu a porta e encontrou seu filho chorando. Sobravam lágrimas e faltava ar quando o menino se virou buscando o colo do pai, que prontamente recebeu a tristeza e a pediu para si, silenciosamente, como quem tenta dividir o sofrimento. Botou o moleque entre os braços, conferiu se não havia nada mais grave para cuidar do acidente e o conduziu para casa.
Sentados na cozinha, o pai de pijamas e o menino vestindo mágoas. A chaleira colocada para ferver a água já estava pitando e nenhuma palavra havia ainda sido dita. O garoto enfiou os braços entre as pernas e botou a coluna dobrada num ângulo desconfortável. O pai terminou de passar o café e serviu o par de xícaras na mesa. “Vai, toma que tá forte”. O garoto mirou a mesa, voltou sua atenção para o chão. O pai esperou pacientemente quando o choro voltou, até dar mais uma trégua e cessar.
Foi recordando as dores do seu pequeno que, no trabalho, iniciou o ciclo de dedos e teclas, olhos e árvores, murros e mesa. Tentava a distração, mas não conseguia não se angustiar. Acontecia com todo mundo, mas estava acontecendo com a pessoa que mais amava.
De volta às lembranças da noite anterior, o menino finalmente pegou o café com as duas mãos, assoprou e, antes do primeiro gole, disse ao pai o porquê de toda a situação. O Caio, amigo desde o começo do colégio, havia terminado com ele. Estavam juntos tinha pouco mais de um ano, mas a entrada na faculdade modificou o cotidiano, modificou o amor, modificou o Caio.
Eles estavam, o menino e seu namorado, o Caio, em uma festa da faculdade dele, umas dessas reuniões de república com muita bebida, pouca luz e nenhuma noção. Garotos e garotas enchendo a cara e conversando e se conhecendo. Todo mundo dançava, todo mundo se pegava. Tudo tranquilo e tudo gostoso até que, em um canto e depois de ir pegar bebida para eles, o Caio perguntou: Será que é só isso tudo mesmo? O que a gente pode ser juntos?“. Um belo começo de fim.
A conversa foi longa, com muita cachaça entrando e verdades saindo, desculpas, ofensas, a ruptura. O Caio não ficou na festa, pegou carona com uma amiga. O filho foi embora sozinho e o caminho dele só terminou com a frente do carro toda fodida no fundo da garagem.
O pai ouvia toda a história com olhos atentos, já no segundo café. Deixou o garoto contar detalhes, se repetir, soluçar entre uma afirmação e outra, encontrar seus próprios caminhos. Ao final, disse “filho, o pai te ama, a mãe te ama e o Caio não te ama. E eu sei que isso dói muito”.
No trabalho, o pai ficou pensando nessa conversa enquanto misturava coisas que queria ter dito com as situações que viveu quando sua vida adulta também estava começando, as mulheres que ele magoou, as vezes em que ele saiu machucado em algum fim de relacionamento com algumas delas. Queria dizer para o filho que aquele seria só o primeiro de muitos dissabores, que existiam outros Caios muito melhores que aquele dando sopa por aí e, sabendo que nada disso acalentaria aquele coração, naquela última noite, preferiu desferir apenas a primeira frase e um resto de silêncio.
Segurou a mão do garoto, ouviu mais das reflexões bagunçadas dele, ofereceu mais café. Deixou que a exaustão fizesse seu trabalho e o filho fosse se deitar para dormir com suas forças ausentes. Adormeceu em dois minutos.
Ele não. Ficou mais algumas horas acordado zapeando qualquer coisa na tevê. Abriu um livro, mas não leu página alguma. Lembranças de frustrações vieram à tona, nada que o entristecesse. Na verdade, foram esses fracassos que, em boa medida, fizeram dele o que ele é. Só preferia, e sabia bem que esse não era um pensamento exclusivo dele como pai, que o filho pudesse não passar pela metade do que ele passou.
Não entendia, ele, o pai, que havia entrado na mesma dança do filho. O garoto, pela pureza de enfrentar o primeiro pé na bunda do namoradinho. O pai, pela lisura tardia de querer proteger o filho das mazelas do mundo.
Ambos na valsa do acaso.
O amor. Ele bota a gente pra dançar.