Saiu com a garota, e com o pai dela também | Do Amor #117

O alívio de afrouxar a gravata para guardá-la no bolso lhe parecia o prenúncio de uma noite boa. Enquanto aguardava a namorada descer o elevador para lhe receber na portaria do prédio, concluiu ser melhor entrar menos formal no evento em que finalmente conheceria os pais dela. Estavam namorando tinha uns meses e ele tinha o desejo de fazer tudo certo, tinha muito apreço pela garota e seus cinco anos a menos que ele. O fato é que ele se via espantado sempre que pensava estar em uma relação, não por ser estável, mas por acordar todas as manhãs com um propósito, com a cautela dos amantes, imaginando que suas ações sempre reverberariam no namoro que estava, a cada dia, mais gostoso.

Nem parecia que poderia ser feliz nesse tanto, tendo que os anos anteriores foi de putaria e desalento, meses após meses preso em labirintos de festas e drogas, pessoas desconhecidas se deitando na cama com ele, ele caindo no colchão de mulheres malucas e homens depravados, levando mordidas e socos no abdômen, chupões e café da manhã em padarias que nunca tinha pisado antes, de fodas intensas, lembranças empapadas, mas um período com o constante semblante contrito voltando para casa. Antes dela, do seu novo amorzinho, até chegou a quase namorar um cara dois meses mais velho que ele, mas não deu certo, o outro também carregava seu próprio novelo de confusões e desatar dois nós de uma vez pareceu tarefa impraticável, mas ao menos serviu para que ele pudesse enxergar possibilidades exuberantes. Se não fosse esse término, abrupto mas perspicaz, talvez nunca tivesse a chance de ter o que tinha naquele momento, a sua mocinha linda, a menina que lhe acalmava a alma mas ainda lhe dava dores pelo corpo. Sedenta. Interessante também que, enquanto aguardava a descida dela, olhou a calma e bonita rua em que estava e sorriu. Uma sensação intrigante na cabeça, uma vizinhança de pensamentos, Déjà vu. E então, ela apareceu.

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Subiram o elevador enquanto ele elogiava o vestido dela e ela tirava uma selfie dos dois no espelho. A cada andar, ele prensava um pouco mais o polegar contra a rolha da garrafa de vinho que trouxera para presentear os pais dela. E entraram, afinal, no apartamento da família, um imóvel espaçoso e bem iluminado, com uma varanda daquelas que vemos nos comerciais de empreendimentos que garotas já machucadas pela vida distribuem nos sinais fechados e, lá, uma mesa opulenta para uma dúzia de convidados acomodava o pai e a mãe da namorada dele. Se cumprimentaram, três beijinhos aqui “pra casar”, riu a mamãe dela, um aperto de mão ali, um pai taciturno e silencioso, um homem de rosto teso que parecia ter pregos afiadíssimos no estômago que regurgitava junto com a palavra “olá”, estranhamente belicoso, não havia recebido o briefing de pai ciumento da namorada. Mas manteve o galanteio e deixou passar. Todos se sentaram à mesa para tratar de comer os belisquetes ajeitados com esmero. Contou para a sogra como eles se conheceram, ouviu histórias do tempo de faculdade de sua garota, brincadeiras com os outros namoradinhos que ela levou para casa, e o pai olhando para seu prato, brusco e impenetrável. E esse comportamento foi chamando cada vez mais a atenção dele. Não fazia sentido, em sua cabeça, ser tratado com essa frieza em dois mil e dezenove, “estamos chegando em outra década de vinte, não aquela lá de trás”, pensou até de modo arrogante. Mas o caso é que sua companheira não havia mesmo lhe dado pistas de que o pai era do tipo zeloso em demasia, antiquado para o jeito tranquilo dela. Então ele resolveu investigar. Deixou mãe e filha entretidas em recordações e fitou o sogro com olhos glaciais, se colocando no mesmo patamar de confronto. Olhou a boca com as duas extremidades bem para baixo, a testa acumulando ranhuras, como se tivesse sido desenhado por uma criança que luta contra o sono, e o olhar reprovador de volta, batendo direto contra o seu. A porra dos olhos. Ele conhecia aquele… já tinha tido contato com tudo aquilo, com todo aquele. Ele. “Porra!”, pensou num soluço que fez derrubar vinho na toalha da mesa. “Ó, céus”, escutou a mãe botando panos quentes e dizendo que não tinha nada demais. Também escutou as duas se mexendo para secar a toalha, tirar a taça suja da mesa, mas seu rosto não se moveu, seu corpo coagido a também não mexer um centímetro. Estava de guarda. Estavam. Ambos. Um com os olhos no outro. E veio na boca dele a lembrança de conhecer o pai da menina, de sua namorada. Conhecia não só sua fisionomia, mas o jeito com que ele se mexia, recordava do sorriso dele e do peso das mãos de dedos grossos que ele tinha. Veio em sua boca a caralha do gosto da boca do homem em sua frente, o sabor da carne dele, da bunda dele, do pau dele. “Porra”, repetia sua cabeça enquanto a inundação de tudo o que foi invadia sua cabeça. 

Sua namorada repetia que tava tudo bem, para ele não se preocupar, que era só um vinho na toalha, mas ele seguia catatônico. Lá, naqueles dias de solteirice desenfreada, nos tempos em que não dormia sozinho nem por decreto e basicamente transava com qualquer coisa que se mexesse e desse à ele um “oi” de volta, teve um dia que ele pegou um rapagão mais velho, que não chegava a ser um sugar daddy, mas tinha mais experiência de vida que ele. Se atracaram no carro, numa rua escura, no breu da madrugada que abençoava os libidinosos. Transaram no banco de trás, esporraram sujando o banco, deram risadas. O papai, na ocasião, deixou uma nota de cinquenta para ajudar na lavagem do veículo. E aí da sensação mágica de já ter estado ali embaixo, foi porque, na ocasião, levou o date até em casa. “Você não pode subir”, de repente a lembrança batia enquanto parecia ouvir diretamente da boca do homem à sua frente, como se, mais uma vez, ele sussurrasse em seus ouvidos, “tem gente me esperando lá em cima”, sentenciava enquanto lhe mordia o lóbulo da orelha. E, mais uma vez, seu corpo gelou, agora não com o tesão e a preguiça pós gozada, mas de terror. Enquanto as mulheres da casa levavam a sujeira para a cozinha, pensando minar a vergonha do visitante, o pai se levantou e foi até ele, apertando-o pelo braço, não com raiva, mas para servir de alerta: “cara, vai embora dessa casa já, larga da minha filha, esquece esse papo de namoro, de ser certinho”, dizia em voz baixa e com o maxilar praticamente travado, espremendo dente contra dente, “já deu na cara que isso não vai dar certo nem fodendo, como você teve coragem de subir aqui? Caralhos, termina com isso o quanto antes e vamos viver a porra da vida normalmente”.

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A vontade inicial foi de, claro, mandar o papai tomar no cu e dizer que ele é quem deveria carregar os contratempos dele. Só que, botando a mão no coração, imaginou como seria a vida escondendo isso da sua amada ou, ainda pior, como seria contar para ela que ele, além de estar comendo ela, já tinha fodido também o seu pai. As comparações, a voz dele na boca dela, os pedidos depravados dela se assemelhando com os dele. Do segredo à tragédia familiar. O cálculo foi feito rápido demais mas não teria outra resposta.

Quando a namorada voltou para a varanda, estava só o pai dela lá, juntando com a unha uns restos de pão.

O amor machuca pra cacete.

Jader Pires