Se tem alguém que você pode confiar, é minha ex | Do Amor #104
Quem diria que, de todos os projetos em todos os trabalhos nas infinitas empresas que existem neste gigante mundo, ele cairia justamente com a ex-namorada para montar um plano de negócios. Levantou os ombros com as mãozinhas para cima e a cara de “o que posso fazer?”, quando saiu da sala de reuniões depois de apertar a mão daquela que havia, três anos e meio antes, dado com o pé em sua bunda.
Mas, tanto tempo depois, não sentiu a pressão de um retrospecto juntos na hora de afinar as questões da ata da conferência. Na verdade, não tinha conectado suas antigas emoções àquele compromisso profissional. Só achou curiosa a brincadeira do destino de enfiar ambos em um mesmo cômodo sem que um deles pudesse sair à francesa, afinal, questões profissionais estavam sendo travadas. Saiu de lá com a sensação de dever cumprido e um pequeno alívio por constatar que, sim, os dois poderiam ser adultos e orbitar a vida um do outro sem explosões, cortes ou afrontas.
Em casa, comentou com a atual companheira da coincidência das coisas. Disse do seu espanto ao dar de cara com a outra, de como sua boca começou a se retorcer para baixo, mas que, antes disso, conseguiu segurar o ímpeto e manter o sorriso diante dela e da cliente dos dois, de como, sem que falassem nada abertamente, todo o compromisso foi travado com olhares de “que coisa, não?”, por isso a pose de emoji ao sair daquele ambiente, dando de ombros e jogando para o acaso os passos futuros. A namorada de agora riu com ele, o chamou de fofo e de maduro por enfrentar esse momento curioso com profissionalismo e sem maiores percalços. Comentou que a ex dele também estava de parabéns, mas sentiu uma coceira quente no estômago quando ele concordou e também fez elogios à ela, dizendo que foi brava e que também era uma fofa de ter deixado o que estava lá atrás, bem, lá atrás. O passar dos dias não ajudaram nessa pequena gastrite.
A cada noite, ele voltava com novas histórias dos dois, dessa nova aproximação, de como ele estava curioso em saber mais da nova vida dela, dos acontecimentos incrivelmente interessantes que aconteceu, das viagens que ela fez, do namoro posterior dela que também deu errado e de como eles riram quando descobriram que ela tinha um padrão de interesses amorosos, de como o ex se parecia muito, em atitudes, com ele, o “ex ex”.
Num final de semana, pegou-o rindo sozinho com o celular na mão. Questionou não diretamente, mas rodeando, “cercando o frango”, como ela pensaria mais tarde, dizendo se ele tinha gostado do restaurante que foram, se ele estava alegre por conta da comilança de pouco antes, que ele tava com uma cara jovial, interessante, interessada. E ele comentou que a ex-namorada estava falando de trabalho, mas que mandou umas coisas engraçadas, lembranças de quando estavam juntos, de uma viagem que pensaram que seria perfeita, que se tornou inesquecível pela sequência de pequenas tragédias que foram acontecendo, desde quase capotarem o carro, o chute que ela deu na perna dele durante um striptease alcoolizado e malsucedido.
O brilho no rosto dele, primeiro foi interpretado como besteira da cabeça dela, que, claro, os dois não tinham mais nada e que cada um estava vivendo sua nova vida, e que havia uma empolgação natural no reencontro, os sobreviventes depois de sair dos escombros. Mas a graça na cara dele se seguiu nas semanas seguintes, assim como as conversinhas e aproximações.
Até beirar na tampa.
“Gato, para e pensa bem”, ela disse depois que estalar os dedos em um dos perdidos que ele passou a dar, entretido na tela do celular, nos papinhos com a outra. “Pensa com carinho”, ressaltou antes de falar o que, em sua cabeça, precisava ser dito, mas que tinha uma resposta que queria muito ouvir. “Você tá querendo alguma coisa com ela? Qualquer coisa. Mesmo que um revival, uma constatação de quem, sim, vocês dois eram bons juntos”. E, arrumando sua postura no sofá, foi além. “Será que ela não está afim de você? Não tá querendo provar alguma coisa, um ponto, um pinto, o seu pinto?”. Falou rápido até todo o ar passar pela boca, como num desafogo.
Sem responder. Ele só botou os olhos arregalados para baixo, sobrancelhas tentando se agarrar uma na outra, retorcidas, puxando pela memória os acontecimentos dos últimos dias, os flashbacks da ex lhe dando oi com um abracinho, as palavras-chave que ela usava quando queria agradá-lo para ele fazer algo do jeitinho que ela queria, mas agora no trabalho e não na cama. Recordou também dos momentos ótimos que tiveram juntos, de como eram parceiros e como ela o fazia rir, como estava fazendo nos últimos dias. Daí se lembrou do término, de como se ofenderam, da maneira com que ele deixou ela falando na última briga, dos meses derradeiros em que mastigavam ódio em silêncio, de como já não tinham vontade de transar um com o outro, da explicação que ela lhe deu, lá no fim de tudo, de como tinha atração por quaisquer caras que passassem na rotina dela, menos por ele, da secura que ela confessou ter ao se deitar com ele, da total e completa ausência de tara que ela adquiriu já na decadência da relação.
Abriu um sorriso de gozação, sentiu as pernas relaxarem novamente os músculos. Olhou para sua namorada e, com toda a tranquilidade que aquela pergunta lhe deixou, respondeu: “Gata, se tem alguém nesse mundo sem a mínima vontade de dar pra mim, é a minha ex”. Deu um beijo na testa da sua garota e foi escovar os dentes para dormir.
Tem amor que não volta não.