Uma noite verificando incertezas | Do Amor #120

Era mais uma daquelas madrugadas tediosas em que a gente abre um site de putaria e, quando menos se percebe, dezenas de abas se acumulam no browser. Lá, entre vídeos que carregavam, propagandas para aumentar pênis e fotos de Playboy dos anos 90 escaneadas, o alerta:

“CUIDADO. Este site pode danificar seu computador. Você pode estar sendo atacado nesse momento. CUIDADO”.

Olho para os lados, as janelas continuavam fechadas, o rádio desligado, as buzinas se conversando lá fora de quando em quando. Fechei aquela aba, fechei todas as outras. “Que mundo doido, né?”, pensei.

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Abri o meu antivírus, um daqueles pagos, cheio das atividades de segurança e verificação. Botei logo no ajuste completo e sentei o dedo no danado. “Começando a análise”. Me reclinei no encosto da cadeira e acendi um cigarro. Olhei pra ponta acesa e lembrei do alerta. “CUIDADO”. A indústria do cigarro é alvo constante dos alertas governamentais que visam a saúde pública e integridade da população. Uma droga lícita, ou seja, condenável moralmente mas não nos parâmetros da lei precisa de vigilância frequente para que se evite o alastramento de um vício como esse.

E, cacete, que coisa boa que é botar essa chupeta do diabo na boca.

4% da checagem do antivírus. Lembrei da mamãe que vivia me checando quando era pequeno. “Não sobe aí nessa mureta, menino!”, “pare de correr assim que vai quebrar a cabeça”, “leva a jaqueta pra não ficar resfriado, rapaz”. Mamãe era dura na queda. Essas crianças de hoje em dia não tem mais nem a liberdade de chegar a tomar chamada da mãe. As câmeras fazem esse trabalho e o medo injetado é tamanho que trava a tentativa antes mesmo de ser cogitada. Coisa meio doida assim mesmo. Todo mundo fala que criança tem é anjo da guarda pra não se arrebentar toda na fase de conhecimentos constantes e testes corriqueiros. Esses daí tão é ficando sem trabalho.

Podia haver um estudo celestial para realocar alguns dos mais ociosos para uma missão intensiva no bar Andorinha, esse que fica em frente ao predinho onde moro. Todas as noites tem briga lá dentro. O bar só fecha quando o tempo fecha, quando o coro come, quando a chapa esquenta. É só começar o primeiro bradar de impropérios, os socos iniciais de mesa e, enquanto mulheres separarm beberões que querem se atracar, o dono vai apagando as luzes e subindo as cadeiras. Quando o abacaxi está pronto para ser descascado lá fora, ele baixa a porta metálica e pica a mula. À vizinhança, restam as apostas. Na maioria das vezes não dá em nada, mas já teve sangue e choro. Até hoje, nada de vela, ainda bem.

E a gente achando que, complicado mesmo, é lá pros lados do Oriente Médio, com foguete e bomba rasgando o céu. 39% do trabalho do antivírus concluído e eu pensando no mundo cão em que vivemos.

Botei logo o cotovelo na escrivaninha e a testa entre o polegar e o indicativo direito. “Meu deus”. Não existia mais amor em SP e nem no meu Facebook e menos ainda no bar Andorinha. dei mais uma tragada, joguei os cabelos para trás. Agora era mão na boca e olho no teto.

Fazia dois meses que ela tinha terminado comigo. 74%. “Ah, que era legal, que a gente se dava bem”. Ela atendia minhas ligações, a gente marcava de sair e o papo era sempre bom. O sexo era sempre bom. Pelo menos era o que ela me dizia. Que era bom. Ela sempre me acarinhava o peito depois do sexo.

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Sabe? A gente se deitava, eu acendia um cigarro, peito pra cima. Ela serpenteava de lado pela cama, se encostava, entrelaçava a coxa dela na minha, a cabeça no meu braço e a mão no meu peito. E acarinhava. Jogava conversa fora e os dedinhos subindo e descendo meu tórax. A voz dela depois do sexo era incrível. Uma mistura de preguiça e certezas, sabe? Era mais leve e rouquinha. Satisfeita.

78%. E daí ela pediu para eu me afastar. 79%. Ela não queria criar vínculos emocionais, para ela, estava deixando de ser saudável. 80%. Eu não podia mais ligar e não deveria mais esperar por ela na porta do trabalho e o porteiro do prédio dela recebeu ordens estritas para não me deixar subir. 82%. Que coisa. 83%. Ela era a certa da vez. 84%. E agora eu não posso nem chegar perto e o mundo é violento e as crianças mimadas e o cigarro ainda faz mal e meu computador pode estar danificado ou com uma porta aberta para invasão. 85%.

O choro vem como há muito não vinha. Copioso. Caudaloso. Faço um escândalo com as mãos na cara, tremendo e soluçando perdido em imagens. 92%. Ela de vestidinho me esperando na porta do bar. 93%. Aquele sorriso grande. 94%. Pessoas chorando a morte de parentes entre escombros em Gaza. 95%. Anjos da guarda fazem fila com suas barbas acinzentadas e por fazer, esperando a vez para o cadastro em um novo emprego na segurança de espíritos privados. 96%. Meus heróis dos filmes de velho oeste, idosos e sentados em poltronas empoeiradas com cobertas em seu joelhos e tubos em suas narinas para conseguirem respirar. 97%. Uma hecatombe levando a merda toda buraco abaixo. 98%. Eu, sozinho no mundo pós-apocalíptico. 98%. Com uma arma na mão. 99%.

O “plim” me puxa de volta na frente do computador. 100%. O antivírus fez sua parte e verificou todo o meu sistema e minhas pastas. Nada foi encontrado. Ele me avisa:

“Está tudo bem”.

Fico aliviado. Feliz, até. Dou um sorriso pra tela.

Dormi na sala mesmo. Não acordei uma vez sequer.

Foi um sonão bem gostoso.

Jader Pires