A narrativa de ser feliz no amor é o que deixa a gente triste com o amor | Do Amor #121
A cena é a seguinte: A gente conhece alguém legal e fica com vontade de pegar. Foi no Tinder, aconteceu na saída da faculdade, a garota nova do trabalho, o cara que te dá umas aulas na academia, o conhecido estranho do busão toda volta para casa, num fim de festa, na casa do amigo, entre colegas, o carteiro, o leiteiro, a enfermeira que docemente retira sangue das tuas veias para o exame de glicose. Tesão e carinho podem surgir em qualquer lugar. E que bom! Os amores platônicos (agradeçam o Platão depois).
Daí a gente espera contatos, joga os verdes, confirma a reciprocidade (não vai cantar do nada a porra da profissional que tá com uma agulha no seu braço, ô babaca) e bum, acontece, nos atracamos, mordemos bocas, prensamos coxas, descabelados, possuídos. Mas não saciados. Não, ainda não. Tem muito mais de onde veio esse tantinho de delícia. Os envolvidos marcam novos encontros, outras traulitadas, risos no bar, mãozinhas por entre os copos, piscadelas, espaços no banco de trás do carro, no escuro do portão de casa, mensagens a semana toda, “acho que tô gostando dela”, “ele não sai da minha cabeça’, suspiros, vontades, determinações. Vai dar namorico.
Que lindo! Sejam felizes! Ela é a garota da minha vida, ele é o cara que me completa, “nós vamos ser muito felizes juntos”. E é aqui, neste pontinho bem específico, que vai tudo por água abaixo. Criamos a porra da expectativa.
E trata-se de uma parada muito tênue, porque é claro que vamos inventar possibilidades na nossa cabeça, faz um bem danado sonhar, é gostoso vislumbrar e construir algo junto com alguém, ou alguéns, e é mesmo, a aproximação, a intimidade, as trocas, o auxílio mútuo. O problema é que viramos uma coisa ampla do avesso, e o que era avenida aberta se torna, de uma hora para outra, funil. Porque idealizar essa relação, colocar anseios no longo prazo, vai minar justamente as chances, as perspectivas. Isso porque criamos um só caminho, em vez de trabalhar com variáveis, com uma maior amostragem mesmo. O que quero dizer com isso: quando nos apaixonamos, traçamos, então, o que esperamos desse amor, e tudo o que sai esse plano é visto como erro, equívoco, imperfeições que necessitam deixar de existir. E isso vai gerar sofrimento. Se ele não coloca a escova de dentes onde ela sempre esteve acostumada, se ela prefere não transar de manhã logo cedo, se um não usa o Instagram como o outro gostaria, se prefere terça e não quarta, se amarra o tênis com uma volta no balão ou se enrola as duas orelhas no nó. Se um prefere esperar mais, caminhar devagar, se o outro corre demais, quer tudo pra hoje no fim do dia. A complexidade de lidar não só com a pessoa, mas com o trabalho da pessoa, as questões familiares da pessoa, o momento e as amizades e a idade e tantos outros fatores que estão doidinhos pra entrar na seara de prioridade. Se a gente cria uma narrativa de como as coisas precisam ser para caminhar rumo à felicidade, vamos sofrer bastante no processo, durante o caminho, porque tudo vai invariavelmente ocorrer de um jeito distinto ao que você pensou.
E o engraçado é que, mesmo assim, ele pode chegar o mesmo ponto! Mas, como a coisa toda foi se encaminhando fora dessa narrativa, do roteiro, da receita que enfiamos na mente, vai doendo, vai desanimando, começamos a minar saídas para crises, enterramos atenção no desacerto em detrimento do bom senso, do que foi gostoso! Engajamos do avesso. E daí machuca, e parece que somos tortos, incompletos, imprecisos. E quando tudo acaba, gente, aí vem uma segunda rodada de angústias e provações, nada parece certo, outras pessoas não chamam atenção, novos momentos não brilham. Pudera, nossos olhos não estão no presente, mas num futuro que não vai existir. Como ser feliz operando assim? Distante do que está acontecendo?
A gente precisa sentir, estar próximo, o tal do viver o momento. Esquece o carpe diem e os ímpetos da juventude, mas comecem a construir relações de pequenos passos, de pouco, e com folga, com abertura, com vantagem para ajustes, correções, mudanças, alternativas. Não foque na narrativa que tá doida pra se firmar na cabeça, mas no que sustenta a narrativa, o que tá por tr´ås dela, embaixo dela: as sensações. Se a gente perceber que não é casar com fulano que vai deixar a gente feliz, mas aproveitar o gostoso que ele passa estando com ele neste recorte da vida, bingo! Vai oscilar, vai renovar, daqui três anos vocês dois (ou três ou quatro) vocês todos serão outras pessoas em novos empregos com diferentes amigos usando roupas que não usavam antes e preferindo discos que naquela época nem existiam! E vão construir os elos em uma nova relação, a mesma, mas outra, mas aquela de sempre. Vão ter as fases de viajar, de trabalhar, de verem-se menos, de bater vontades de outras pessoas. E vão organizando, ajustando, equilibrando, montando o que funciona. Se não bater mais, vão desejar felicidades um para o outro, desejos genuínos da alegria alheia, e vão seguir, atrás das vontades novas e de pessoas novas. Pode acontecer. Não queremos isso hoje, mas não há milagre e contenção, hoje, que evite isso pra daqui doze anos.
Esqueçam a historinha na cabeça de vocês, do quão inusitado foi conhecer o amor da vida de vocês, o quão fantástico foi, de como foi perfeito, de como “era mesmo para ser”. Apaguem a única versão da história de vocês mesmos, “só posso ser feliz com aquele ali, daquele jeito ali”, que essa é a maior balela que já colocaram na sua mesa. Goste da pessoa, e não do filme romântico que a gente cria na nossa cabeça, com esse amor como protagonista. Hollywood vai falir, mas Platão vai te agradecer.
E você, a mim.
Então já me adianto. Não há de quê.