Portanto, o que o plano de saúde uniu, ninguém separa | Do Amor #143

Foi necessário deixar o vestido no varal pra pegar um sol e tirar o cheiro de guardado. Finalmente os dias de primavera eram melhores e ela poderia, enfim, botar as pernas para fora da roupa e começar sua segunda semana no trabalho. Na hora do almoço, encontraria na avenida seu namorado e queria que tudo estivesse perfeito. Já estavam morando juntos tinha um ano e tanto, mas juntaram as roupas num mesmo armário e só. Dividiam o aluguel, mas também amarguras e risadas. Achavam que nada atestaria mais aquela união que a doce intimidade de rachar as contas. Assim que se mudaram, compraram microondas e tevê, ganharam um sofá doado de um casal de amigos, viraram o primeiro ano jantando numa bancadinha ao lado da pia até poderem comprar, mais que uma mesa, o jogo todo de cadeiras que sempre estavam os olhos da cara.

Mas, naquele dia, ela despertou tomada da certeza de que se ajoelharia, fato tão decidido em sua mente que por pouco deixou de lado o tubinho esverdeado pra não correr riscos de ralar um dos joelhos no chão, nem tanto pelo gesto, mas pela garantia de ganhar piadas de quinta série o resto da semana. Mas encontrou solução no acerto de que não precisaria de fato se ajoelhar, que encontraria a sagacidade de seu companheiro no processo e ele a levantaria antes de completar todo o dobrar. No banho, girava as mãos em cento e oitenta graus, olhando ora para a rosada palma da direita, ora para as costas e suas ranhuras. Era quase uma coreografia da Beyoncé, mas sem a trilha sonora na cabeça. Desceu do ônibus e atravessou a rua como se seus pés não tocassem o chão. Na mesa do trabalho, logo de manhã, antes mesmo de se sentar ela encontrou repousado sobre o teclado a caixinha e um envelope branco grande. Abraçou-o contra o peito enquanto fechava os olhinhos e botava todo o arredondado do queixo para cima. O dia havia chegado. Um pouco trêmula e sorridente, mandou mensagem confirmando que almoçariam juntos. Reservou restaurante, pediu pra ele chegar arrumadinho. E iniciou silenciosamente a contagem dos segundos. Dedos contra a borda do teclado eram a cadência inicial, depois passou pro ranger da cadeira do escritório enquanto endireitava a coluna e, já perto de comer, escutava a pontinha dos sapatos dando contra o pé da mesa, tinc e tinc, tinc e tinc.

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Entrou no banheiro e passou batom, pacote dentro da bolsinha, foi de Uber até o encontro dele, bonito numa camisa branca. Almoçaram rindo, ele desconfiado que ela estava estranhamente iluminada. Pagaram a conta com o Vale-refeição novo que ela havia recebido, nem senha digitou, usou a aproximação para impressioná-lo. E conseguiu. Levantou-se como pôde, as pernas tiritando, recebeu a ajuda do namorado que carregava no rosto as deformações da dúvida, intrigado com a cena. Pegou a bolsa, a pedido dela. "Abre. O envelope". Puxou a folha e lá estava a união estável dos dois. Mas o documento não sanou seus questionamentos, já que datava de uma semana antes do almoço, e já era de conhecimento dele a formalidade, ele estava lá, precisava estar, queria estar, assinou e tudo, tinha lá, os rabiscos dele. "Não, tonto", disse ela recuperando melhor o fôlego e já engatando uma gargalhada, "a de trás". Enfiou a mão novamente no grosso invólucro que, agora, já tinha uma mancha ou outra de molho e contato com superfícies empoeiradas, e reteve os olhos no novo papel. "Olá, seu plano de saúde já está ativo e pode ser usado! Você e todos seus dependentes já contam com uma rede de...". Seguiu com a atenção mais abaixo e encontrou o nome completo dela seguido do seu. Mais pro final, duas pequeninas cavidades afixavam um par de cartões plastificados e brilhantes. Estavam, ambos cobertos. 

Se abraçaram e se beijaram e foram felizes por toda a longa e saudável vida dos dois. Nada mais desuniria aquela união.

Jader Pires