Você nunca vai poder matar essa saudade | Do Amor #144
De começo, levou até certo tempo pra se lembrar do nome dela. "Como era mesmo?". Pudera, a história dos dois se encaixou em três encontros e duas semanas e meia de conversas intensas, dos vídeos safados às acusações desmedidas e o tédio. Pararam de se falar tinha bons anos, entre quatro e cinco. Só que o tico de carinho que um dia tiveram fazia com que não se deletassem das redes. Passaram a dar só parabéns nos aniversários e depois nem isso, mas não conseguiam apertar o botão de parar de seguir, como se a posição de testemunha ocular lhes caísse bem, ou então a inconsciente egolatria de buscar nas derrotas alheias afirmação de que, sem a gente, o outro não é nada.
Mas empenhou-se alguns minutos para lembrar do nome dela porque estava com saudades. Arrumou, no final de semana, sua biblioteca pequena de livros, limpou capas, alisou as páginas com olhos e dedos cuidadosos, tentou separar suas edições por cor, mas sabia que seria impossível manter a decoração daquele jeito. Existia, para ele, uma organização específica que consistia em juntar escritoras e escritores em categorias de importância, mas também próximos geograficamente, a depender da importância. Botou os Zambras junto com Juan Pablo Villalobos, mas encaixou seus Borges junto com os Saramagos. A impecável coleção da Svetlana Alexijevich dividia seus livros-reportagem de um lado e jornalismo literário do outro. E assim, se sentia agraciado. Nessa arrumação, tocou depois de muitos anos no seu Pergunte ao Pó, um dos preferidos de sua juventude. E aí pipocou a lembrança dela. Indicou a leitura, ela gostou, se interessou até demais, comentou ser um divisor de águas, apontou que a derrota do Arturo Bandini lhe fazia mais orgulhosa de seus insucessos, que era bom se sentir representada num pequeno romance que se passa em Los Angeles. Dizia ser metade escritor bonachão, metade garçonete mexicana. E ele concordou, confessando que sentia algo muito similar. Recordando do olhar irônico dela que o fulminava quando ele achava que estava arrebentando nos agrados, a ironia forte dela que o deixava indefeso, as mordidas que ganhou nos três encontros como estranha forma de doutrinação, para que ele aprendesse a conversar com ela de igual para igual. O medo que tinha da presença dela o fez perceber-se completamente infantil com a vida e com as mulheres, era silenciosamente agradecido pela constatação. E resolveu, então, tornar o reconhecimento como dito.
Desmontou seus traumas e puxou lá do armário mental onde guardava o que queria esquecer, o nome dela. Claro. Nunca deixou de saber, só constatou ainda ter um restolho de imaturidade para se fazer esquecer do nome de uma pessoa importante. Presumiu que ela estaria bem e ocupada, tinha como meta muito clara crescer na empresa que tinha recém ingressado, era interessada e movimentada, estudava e contava sempre fazer o que tinha que ser feito. Bateria suas metas, mostraria-se capaz, acumularia bônus e extras, seria a dona da porra toda. E nada naquele recorte o faria pensar que ela não tinha conseguido. Tudo o que queria. Pudera, até para terminar com ele ela foi contundente, direta, não dura, mas sem enrolar, não isenta de carinho, mas sem sentimentalidades. O melhor para os dois, Era o resultado que tinha encontrado e compartilhou com ele dados tácitos e uma narrativa plausível. Viviam, juntos, não numa relação, mas em pequeninas nulidades que só garantiam o torpor de quem busca algo sem nunca alcançar.
Buscou o nome dela na agenda. Preferiu não entrar nas redes dela, não queria saber como ela estava por outra forma que não fosse da boca da própria. Escutou a linha chamar, mas em sua cabeça, a voz decidida dela dava detalhes de sua subida vertiginosa. Até imaginou a vaidade dela escorrendo pelo bocal do telefone para contar de duas ultimas três relações que ela aniquilou com o mesmo esmero que terminara a brincadeira entre os dois anos antes. Riria da capacidade dela de se colocar como dona das situações e esforçaria-se para não convidá-la para sair, mas não iria se colocar para baixo caso ela não aceitasse. A linha caiu. Deixou o plano de lado por uma hora e tanto e pegou o celular para tentar mais uma vez. O "alô" que escutou tinha outro tom e uma motivação muito distante. E também mais velha. Era a tia dela. Não que ele soubesse, foi informado disso depois de ter se apresentado e perguntado pela Babi. O telefone dela estava com esta parente desde fevereiro, quando ela faleceu. "Leucemia", ouviu a vacilante voz lhe contar. Pediu desculpas pelo incômodo, deixou os tardios sentimentos para ela e a toda a família. Foi nas redes, que há muito estavam silenciadas, e desabilitou as travas. A última postagem, como se nada tivesse acontecido, datava de fevereiro. Óculos escuros, sorriso amplo, uma existência que sugava todos os olhos para aquele ponto. Onde ela estava. Não fosse pelos parcos fios, não imaginava vivalma que pudesse afirmar que aquela imagem anunciava o fim. Leu os comentários aleatórios de adeus, despediu-se mentalmente, fez silêncio o resto do dia.
Das saudades que a gente não vai poder matar.