A dúvida dela era: entro no Uber ou não entro? | Do Amor #145

A única coisa que tinha como absoluta certeza era de necessitar, muito mais vezes, repetir uma noite como aquela. Seis amigas e mais agregadas, um bando de garotas no bar, as risadas, as piadas, a tranquilidade de poder tirar a blusa para se aliviar do calor e poder ficar de top rendado laranja fluorescente entre amigas. Se divertiu a beça, já havia notificado o namorado que chegaria em casa, no mínimo, já com os fortes raios do sol das oito. Não teria pressa e nem precisaria daquilo. Seu companheiro dormiria o sono dos anjos, sozinho naquela cama enorme. "Ora, sozinho", pensaria ela embarcando com a patota madrugada adentro, já que as duas gatas disputariam território com ele no vazio do colchão. Riu só de montar a cena na cabeça e voltou sua concentração de volta para o boteco "cazamigas".

image.jpg

Na saída, já quase expulsas pelo dono que botava os pés das cadeiras para cima, ainda tiveram muito tempo para trocar abraços, puxarem já como memória, como boas memórias, os eventos recém ocorridos, quem pegou quem, o garoto mais bonito do lugar que olhou trezentas vezes para ela, que não deu atenção e alegou que era o sutiã que tava brilhando demais. Quem bebeu menos que quem, quem chapou mais que quem. Gritou "dane-se" na beira da calçada e puxou do maço todo amassado da colega um dos últimos cigarros. Resistiu a noite toda, tinha já mais de quatro anos que havia parado com o vício e declarado que não enfiaria mais aquilo entre os lábios, com o pujante perigo de comprar uma cartela na manhã seguinte. Μas bateu no peito que era mais forte que tudo aquilo e que conseguiria, sim, pitar um único no fim do rolê e despertar como se nada tivesse acontecido. Teria que escovar bem os dentes para o namorado não descobrir, não porque este pudesse vir com qualquer tipo de represália, mas porque riria dela por se cobrar tanto, por fazer cara de derrota quando ele sentisse o bafo fermentando pela nicotina alcatrão. Tragou com ímpeto, cabeça empinada para cima, como se buscasse trazer para as narinas o cheiro do universo todinho, sugou o gás venenoso para as entranhas, sentiu a língua molhar, o peito formigar, como se estivesse viva pela primeira vez em muito tempo, e depois a leveza, a sensação de torpor, como se não comandasse mais os membros, refém, escrava, dada aos comandos e desejos daquele filete de papel e fumo. Soprou tudo que podia para fora e sorriu de volta, com a vista embaçada.

Enquanto minguava a quantidade de mulheres na calçada, umas a caminho do metrô, outras pegando os carros, jurando de pés junto que iriam para casa devagar, ficou ela e mais duas na demorada tentativa de pedir um carro por aplicativo. Duas iriam para um caminho parecido e decidiram rachar a mesma viagem. Ela pediu um trajeto só para ela. Fez-se um silêncio de atenção para que todas as três tentassem acompanhar seus carrinhos miniatura deslizando com solavancos pelo mapa desenhado na tela. Quanto mais o carro das meninas se aproximava, mais confusa ela ficava, porque o automóvel cinza dela ficava girando em círculos tortos, andando de trás para frente, tudo meio confuso, tudo meio estranho. Podia ser o 3G, o 4G, poderiam ser os olhos dela anuviados de cigarro. O carro vermelho das outras meninas chegou e elas prontamente se colocaram à disposição para aguardar o veículo dela, mas de modo tranquilo, certa de suas palavras, ela recusou. Mesmo pulando de rua em rua, de avenida em avenida, ele estava se aproximando, chegaria a qualquer momento, estava fácil de ela ser encontrada, havia ainda mais gente em frente ao bar fazendo a mesma coisa, esperando carros, caronas, aguardando o fim da noite. Disse para irem seguras.mas esperou ainda mais cinco, sete, dez minutos e o carrinho desaparecia e tornava a aparecer em lugares estranhos, tão perto e tão longe. Resolveu cancelar e começar tudo de novo. Apertou com o polegar na tela, fechou o aplicativo e também os olhos. Deu a última puxada no cigarro e o atirou longe na rua, mas tomou um baita susto porque mal a bituca aterrissara no asfalto e um farol cruzou na frente, aumentando a visão do carro preto que parava na frente dela. "Mas era cinza o carro", disso ela se lembrava, mas não que havia cancelado a corrida. Quando o vidro desceu, o garoto mais bonito do bar é quem estava dentro. Disse que tava indo para casa, perguntou se ela não queria ir junto, com o sorriso aberto e terminando com a afirmação que agora não tinha mais as amigas por perto para ela dizer que tinha que se juntar ao grupo. E, cacete, ele era bonito mesmo. Mas tinha que voltar para casa, para o namorado, para as duas gatas, e o que seria dela se as amigas a vissem saindo com outro homem. Mas aí bateu. Botou a cabeça noventa graus para a direita e depois fez o mesmo para o lado oposto. Girou em torno de si, que nem o veículo perdidinho no aplicativo minutos antes. Só tinha ela lá, das meninas todas. E só tinha ele lá, aguardando uma decisão. Mirou a tela do celular, a fotografia de papel de parede dela de perfil tocando os lábios de outro cara, do cara que morava com ela. Acima deles dois, o aparelho não marcava nem cinco. Prometeu que não chegaria antes das oito, teria então mais de três horas, não que alguém naquela casa fosse reparar sua ausência até onze e tanto. Três preguiçosos. Lindos. As gatas e ele. Seu companheiro. Lindo. O garotão em frente aos olhos dela. "Você tem um cigarro?", ela perguntou. Ele botou o braço pra fora com o maço cheio na mão. Ela sorriu.

A gente sente amor demais.

Jader Pires