Quando descobriu porque tava bem, ficou mal pra cacete | Do Amor #125
Quando certa manhã Ana Maria acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseada numa geleia pegajosa, molinha e sorridente. Havia dias que andava a suspeitar de certas estranhezas, uns risinhos à toa, a libido escorrendo pelas paredes… das ideias. Estava mesmo mais soltinha e disponível, conversadeira. Foi à academia todos os dias programados, seu corpo tudo podia e sua cabeça tudo queria, a mil exigindo nada mais que cansaços, desistindo só no esgotamento.
Passou duas ou três madrugadas descendo os dedos de forma categórica contra os quadradinhos do teclado escrevendo rascunhos confessionais, retratando seu nupérrimo estado em descrições etéreas, sem saber ao certo onde estaria chegando, mas pela obrigação, entre aspas, de entender melhor o que se passava.
Demorava bons minutos a mais pela manhã caçando a combinação perfeita das vestimentas. Queria se sentir mais bonita. Na verdade, estava curtindo se olhar, sentir pequeninos raios transpassando seu corpo, a parte de trás das coxas, pelo quadril e também na escápula. Chegava em sua mesa entre a cruz de não precisar de elogios porque era uma mulher bem resolvida e competente e focada no trabalho, e a espada de, na última semana, se estranhar quando olhava para os lados esperando que alguém chegasse mais perto falando de relatórios, mas olhando a combinação de cores que ela testou ou levemente obcecado com o quão proporcionais os brincos ficavam quando pendurados ao lado do maxilar ovalado dela. Tava tendo umas semanas bem gostosas mas tava estranho demais. Por que essa leveza toda? Qual era a desse contentamento repentino e sem direcionamento definido? Olhou para frente e fez um “psiu” pro colega da baia ao lado. Com a unha preto brilhando do indicador, apontou para o espaço vazio ao seu lado, indicando que era para ele se aproximar. Precisava conversar. E os dois andavam todo amiguinhos, cutucadinhas nas costelas como provocação, fofoquinhas bobas sobre como alguém comia estranho no refeitório ou quem demorava demais no banheiro. Sim, abertamente eles diziam que andavam parecendo dois adolescentes, mas todo experimento recreativo ajudava o trabalho a ficar menos pesado. Então se aproximaram, iam comer juntos, ele esperava ela para irem até o ponto de ônibus conversando. No trânsito, nas baldeações, na caminhada até o portão, passavam o tempo trocando mais ideias por mensagens, trocando stickers engraçados, desafiando, um ao outro, a enviar discos mais legais e obscuros possíveis, na última semana ele descobriu uma playlist de Japanese City Pop and Jazz-Funk Vinyl Set que fez a cabeça dos dois, ouvindo melodias pegajosas nipônicas dos anos setenta e rindo e trocando áudios dos detalhes que iam pinçando em cada canção.
Em umas duas ocasiões, ela fez o jantar com o vídeo ligado para ele aprender umas receitas que ela dizia serem suas melhores. Ele chegou a comentar que queria provar a versão dela, e não comer o que ele poderia fazer, mas ela provavelmente não pescou na hora e seguiu ensinando-o a misturar os ingredientes do jeitinho certo pra ficar da maneira que ela dizia ser a melhor versão do prato. De pijaminha, se afastava e aproximava da câmera conforme ia cortando coisas e divagando sobre universo e como, no capitalismo, as pessoas possuem liberdades de consumo, mas não liberdades da vida como um todo. Da última vez, enquanto mostrava o quão lindo havia ficado sua comida, apontou a louça para a câmera enquanto fazia uma dancinha faceira e percebeu só mais tarde, antes de dormir, que ele tinha ficado quieto e estático no fim do papo entre eles. Foi dormir tentando entender por qual motivo ele travara. Tentou pegar no sono tentando sacar porque estavam tão gostosos os últimos tempos.
E então, sim! Acordou num sobressalto, sem espreguiçada nem nada, quase chutando o lençol para se desvencilhar. Correu até o espelho para atestar a cara de tola que vinha ostentando já tinha um tempo. Claro! Só podia ser. As gracinhas, o tempo todo colados, ouvidos sinceros, cosquinhas, gente, cosquinhas! No trabalho! Como aceitaria isso se não fosse o que estava constatando ser? Que garota em sã consciência ansiaria pelas cócegas no meio da porra do horário de trabalho de um parceiro da mesma área? Se fosse o Sergião, a Monique, o arrombado do Toledo, ela gritaria na hora! Mas não era nenhum deles. Era aquele louco, o lobo em pele de cordeiro, aquele que veio de fininho falando baixinho concordando tudinho e quando viu, tadinha, tava gostando de cócegas antes da reunião de quinta-feira.
“Eu tô apaixonada, porra!”. E caiu seu mundo. Suadeira, perna molenga, pensamentos gagos. Acabou-se a magia, foi-se embora a suavidade. Um elefante cacetudo e gordalhão apertado com ela na porra da sala. Agora entraria na espiral de rever todos os seus momentos com ele na cabeça para tentar entender se fez, em alguma parte, papel de boba, se ele fez papel de idiota, se ele estava dando sinais de que também… “Ai, caralho!”, soltou enquanto procurava os sapatos por entre as bem nutridas dobras do paquiderme que agora procurava montar em cima de sua cabeça, pressionando-a, colocando-a para baixo. Agora precisaria não só aproveitar a ótima companhia do cara, mas descobri se ele queria também, se ele estava apaixonado de volta. Ou seja, tudo o que era bem legal agora se tornaria bem chato, um mistério a ser desvendado, um teatro a ser interpretado, toda a ladainha. De deliciosa, estava se sentindo péssima.
No amor, tudo fica ruim quando a gente descobre porque tava tudo bom.