Dois amores bons e ruins que rolaram durante a quarentena do novo Coronavírus | Do Amor #130
Entraram pé ante pé, como se houvesse um neném muito frágil dormindo, mas só existiam eles dois naquele apartamento. Riram maliciosamente da preocupação descabida e se comeram na sala mesmo, tênis jogado num canto, vestido pendurado no sofá, acompanhados, eles, de uma vontade de duas semanas. Se conheceram na quinzena anterior, quatro encontros engraçados e proveitosos, beijos e pernas se tocando por baixo das mesas de bar cidade afora. Um benfazejo só.
E chegara a primeira vez de esticar para a casa dela. Transaram, engoliram os gostos um do outro, foi divertido, exaustos, eles dois, com promessas ditas em voz bem baixinha na escuridão da sala de que fariam isso mais vezes. Só que, na manhã seguinte, foi instalada a quarentena. O vírus forçava ordens governamentais de isolamento, para que as pessoas se trancafiassem em casa. "Porra", pensaram quase que ao mesmo tempo. "Logo agora?" ele se perguntou agitado e pelado no chão, enquanto ela, sentada nua de pernas cruzadas no sofá, repetia "mas tá tão legal, mas tá tão legal". E então, numa guinada, ela saltou do encosto e segurou a mão dele, para que se levantasse. Olhinhos dele nos olhões dela, veio o rendoso convite: "por que você não fica aqui durante o isolamento?".
Disse ter um computador a mais, da prima, que ele poderia trabalhar, comprariam mantimentos mais tarde - deixou aberto que poderiam rachar a grana, caso ele se sentisse invadindo demais o espaço dela - e calou-se na instigante espera da resposta dele, que sentiu os dedos do pé formigando, o estufar de peito como se precisasse crescer de tamanho para tomar tal decisão. "Mas eu preciso ir pra casa”, disse tentando ser seco, mas com a voz escorregando na língua de manhosa. "Pra quê?". "Não tenho nem roupa, acho que vou lá, ao menos, pegar umas", completou o pensamento já com o olhar voltado para a porta. "E precisa?", ela disse e a fala dela saiu ronronada quando só faltou lamber as costas da mão ou então bater com a cabeça entre as pernas dele.
Não saíram daquela casa, daquela história, por quarenta dias e quarenta noites.
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Um jantar, tão banal quanto poderia ser, mas trajado de uma dor que não se vê todos os dias. Ela era casada, mas mantinha uma relação aberta tinha mais de ano, pois se via pouco com o marido, que levava uma vida acadêmica em outro continente. Então ela seguia no Brasil, se viam meia dúzia de vezes no ano, mas para não se separar (nutriam mesmo genuínas sentimentalidades um pelo outro, pelo que haviam construído juntos) e nem fazer coisas por debaixo dos panos, pegaram a chave da monogamia que tinham e abriram espaço para mais gente entrar. E ela estava perdidamente apaixonada pela atual situação de ter conhecido um cara legal para caralho que morava no mesmíssimo bairro que ela! Conversa boa, praticidade para se ver, faziam compras juntos, trepavam antes de ele ir trabalhar, com ela aparecendo mais cedo levando pão de queijo e a raba para ele comer. Só que agora a o isolamento pelo Covid-19 seria uma realidade, em um ou dois dias seria decretada a quarentena. Ela gostava dele, ele adorava estar com ela, mas ambos tinham uma vida, ela precisava cuidar do marido em outro continente, da família, ver muitas pontas soltas para amarrar, como fariam esse processo todo? E ele tinha seu trabalho, a saúde pública contaria com os esforços dele. Então, por quarenta dias, não se veriam. E isso machucava.
Juntaram-se, então, uma e tanto da manhã, para um jantar tardio de despedida. Seria um adeus para que cada um botasse esforços no que realmente necessitaria de zelo. Foram horas silenciosas. Era para ter uma farra nunca antes tida para o encontro final, mas o que se estabeleceu foi um momento constrangedor de silêncio, bocas amarradas, pouca comida para dentro do estômago. A segunda garrafa de vinho permaneceu fechada, ela borrou a maquiagem com um choro potencializado pelo soluço. Ele manteve-se batendo um dos pés no chão, as costas dos dedos empurrando farelos de pão italiano na toalha de mesa. Preferiram não dar tchau se tocando. Viraram estranhos e era melhor manter o distanciamento desde aquele momento. Ela prostrava-se religiosamente na varanda às oito e meia da noite, ouvindo os insistentes panelaços cada vez mais altos e o carro preto dele passando em direção ao prédio onde morava. Determinado, toda vez ele desfazia o caminho mais rápido e passava pelo edifício dela, desacelerando o carro, mas sem abrir os vidros, por precaução.
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O amor durante o Covid-19. Nunca foi o vírus. Sempre foram as pessoas. ;)