O amor nos tempos do Coronavírus | Do Amor #129
Que merda de momento ruim para não poder encostar em ninguém e nem sair de casa. Absolutamente todos os pontos da sua vida estavam particularmente desmoronando antes da pandemia. Brigou com os dois namorados quase que ao mesmo tempo, e resolveu que não passaria a quarentena voluntária ao lado deles. O trabalho a sufocava, tinha meses, e a procura de um novo emprego seria completamente inviável naquela altura, com muita sorte, sorte mesmo, só no começo do segundo semestre (ora bolas, quem pensaria em sorte quando todas as catástrofes tombaram juntas sobre uma única cabeça?). Não se atreveria, também, visitar sua família, porque, lá, só encontraria os silêncios irritantes do pai e os excessivos sonos atarantados da mãe. A irmã mais nova? Provavelmente estaria viajando, a perturbada, já que nada, absolutamente nada na vida daquela, atrapalharia seus brilhantes planos de viver a vida intensamente (quando encontrarem a vacina para o vírus, apostaria um dedo mindinho que seria a partir dos suores da caçula).
Nem passear com o Gulliver ela podia. Então o plano seria acordar, ligar o notebook para bater o ponto digital e trabalhar feito louca, imprimir uma velocidade absurda em seus raciocínios e na maneira com que desenvolveria reuniões e “calls”, com a ideia de estafar a própria mente em busca de paz. Era trabalhar, sentir-se exausta, tomar um banho e dormir, para ver se aquelas semanas se apressassem para passar logo e o convívio social fosse, enfim, restabelecido. O que já estava doendo ali não eram nem as cagadas que precisaria resolver, mas justamente o hiato entre início e finalização, como se tivesse despencado para um purgatório irônico e não pudesse agradecer os reinos dos céus e nem amaldiçoar a estadia eterna no inferno. Nem encher o cu de cachaça nos bares fechados à força ela conseguiria, e o restinho de dignidade que achava ainda ter não a permitiria encher a cara sozinha. Talvez depois do terceiro dia, mas não no pontapé inicial. Mas seu dia caminhava feito tartaruga na lama, e zanzar pela casa não ajudava, tentar gastar tempo prontificando-se a preparar todas as refeições do dia também não.
Trabalhou cinco anos em cinco horas, adiantou tudo, delegou mais, ligou para os pais para checar, recusou convite de vistá-los com a desculpa plausível de que eles faziam parte do grupo de risco. Não perguntou da irmã, gastou energia tentando, em vão, acalmar o cachorro, tomou banho, deixou o celular berrando no mudo enquanto seus namorados tentavam falar com ela. Havia pedido uns dois dias de distanciamento, até para não cair em tentação e chamar os dois de uma vez e fazer uma quarentena de dor e putaria. Deixou o aparelho na sala, foi de toalha enrolada para o quarto, deixado um displicente rastro de água ensaboada. Atirou-se na cama e só queria ver o dia seguinte chegando. Por isso, deixou a janela aberta mesmo. Mas seu sono jamais chegaria. Não com a cabeça sendo aquele parque de diversões que estava, luz e gritaria, a frustração de não conseguir o urso rosa no tiro-ao-alvo. Ainda por cima essa. Teria de varar a madruga puta da cara, cansada da gota, ansiosa para um cacete. Até que se pôs a ouvir. Escutava sem certeza, mas tinha também uma pequenina reverberação, um vibrar abafado e cadenciado chegando de algum ponto do quarto. Botou as atenções na orelha, fechou os olhos para que os sentidos restantes fizessem um melhor trabalho no escuro. Tava esquentando, esquentando, esticou o pescoço, nariz lá para cima, deixou de lado a posição fetal na cama para retesar-se, aumentar de tamanho, encompridar-se em busca de algo gostoso.
O tum tum tum vinha da parede em que ficava a cabeceira da cama, o som batalhava para vencer o maciço da parede e chegava asfixiado, mas heróico. Era um gemidinho. Da janela também dava pra chegar algo, um ruidozinho agudo. A planta mental que montou na cabeça a fez entender que ali estava o quarto do apartamento vizinho. Automaticamente lhe veio à mente a imagem harmoniosa dos dois, um casal jovem e gostoso, sedosa ela, ele cheiroso que só. Encaixou a figura deles nos estampidos, nas pancadas mais velozes contra a parede, nos suspiros e grunhidos agora em dupla, ela cada vez mais pontudo, o dele, gutural. Idealizou ela por cima, ajustando sempre a cabeleira farta, colocou-o em cena com as mãos ativas, como gostaria que fosse se fosse ela no controle do galope. Duas dobradiças tomaram o lugar de seus joelhos, ficou mole de repente, mas conseguiu erguer seu corpo até encostar o ouvido no liso gelado do muro que separava o casal transando de sua solidão. Empurrou com os pés o lençol que lhe cobria as pernas, empurrou para dentro do peito todo o ar, para que todo o som ao redor se dissipasse e só sobrasse concerto erórico daqueles dois. Barulhinho bom.
Obedeceu o grasnido do ranger da cama e colocou, então, o tesudo em cima da gostosa, percebeu a violência, o controle, o aumento significativo da velocidade, a potência profunda dos timbres, a coordenação sônica e o vácuo. Tudo aquietou-se abruptamente. Não tinha o empurrar da cama deles, impossível de se escutar novos gemidos. Deixou seu corpo derreter sobre a cama como se fossem os líquidos maravilhosos daqueles dois. Seu corpo todo formigava e era como se estivesse fazendo greve, sem obedecer seus tímidos comandos. Achou por bem deixá-lo seguir seu caminho aleatório. No dia seguinte lidaria melhor com aquela sensações todas. Sozinha. Com aqueles dois na cabeça.
Amor é fogo que arde sem se ver. Só de ouvir mesmo.
Obs.: E o amor é deixar pessoas seguras e curtir as brasas das boas companhias só depois de tudo estar seguro novamente. <3