Dia dos Namorados: "meu crime foi amar essa mulher demais, doutor" | Do Amor #135
Enquanto reparava no subir e descer da própria mão, imaginava percorrer a geografia do corpo dela, as linhas e marcas, suaves e contínuas. Mas a pressão dos longos dedos ritmava mesmo era a empreitada do rolo contra o muro áspero. Solitário, há mais de dois meses vivia em isolamento, sem ver o grande amor de sua vida, a belezinha que animava seus olhos meio juntinhos demais. Seu corpo passou a ansiar pela poesia que era a imagem e companhia dela. Estavam compromissados fazia já um ano e tanto, depois de um problemão por não serem aceitos na igreja dele. Pois bateu com os dois pés no chão e não retrocedeu um palmo. Caminhava com ela de mãos dadas para que o bairro inteiro soubesse da sua gana, que não seria o fato de ela não ser batizada que o faria se afastar daquele corpinho nem do leve aroma avinagrado que saia da boca dela quando amanheciam o dia na mesma cama.
Desceu a rua que dava na casa dela com um balde de tinta carregado e transferia memórias remotas para a prioridade em seus pensamentos. O mágico dia em que a conheceu, voltando do culto e a vendo contar piadas para outras amigas na esquina onde ela morava com os pais, quando a levou para passear pela primeira vez e rodaram bons minutos de carro, como se fossem ao shopping, mas dando voltas cegas até pararem em frente a um terreno baldio para que ele finalmente experimentasse os lábios roliço dela dominarem os dele. Sentiu o quente da lágrima perder rápida a calidez contra a ação gélida do vento e remoía novamente o ódio de quando chegou com ela para apresentar-lhe o culto de sua fé e seus irmãos e irmãs de caminhada rumo à salvação. Lá, onde antes era o Bar do Juarez e havia se transformado em templo, o mesmo portão com barras de ferro, mas no lugar das mesas de sinuca e carteado, dispuseram brancas cadeiras de plástico e repintaram as paredes interiores num amarelo sem saturação, uma mistura de interpretação abnóxia do reino dos céus com a inicial falta de verbas para uma tinta de maior qualidade. Cromatizaram o ambiente com pigmento e cal, o que tira toda a potência de uma cor. Pois foi com esse restante de material sobrado dentro do balde que ele baixou para a frente da casa dela, recordando os narizes torcidos de quem não via boa coisa brotando daquela relação, das línguas bifurcadas dos que tentavam o aconselhar abandoná-la.
Ela tinha um par de olhos verdes tão escuros que o lembrava de quando tinha ido, com uma excursão da igreja para o interior e vira um lago com aquela tonalidade. Sorria para qualquer besteira que ele falava, era delicada e apegada, se pudesse, passava vinte e quatro horas com os dois braços pendurados nos pescoço dele, que nem gravata apertada, só que dando beijinhos molhados ao invés de incômodos. Chegou no endereço, suspirou de forma barulhenta toda a frustração de não poder subir e cuidar de sua amada, da asma dela, maldisse do vírus e da situação de sua querida ser do grupo de risco e começou a trabalhar. "Esse", "ú". Mordia a língua enquanto se concentrava para ficar bonito e não decepcionar sua companheira. O coração dava chutes no peito e a ansiedade era tanta que mal se lembrou de botar espaço entre as palavras. "Suzieuteamo" escreveu no muro que dava de frente pra janela do quarto dela. A polícia chegou com ele ainda reforçando a letra "zê".
Mãos na nuca, o vermelho e azul refletindo no rosto da sua namorada que assistia a tudo do portão, aflita que só. "Suzi? Aqui tá falando que seu nome é Cleiton", resmungou o seu guarda enquanto tirava errôneas satisfações com a donzela do rapaz e explicava pra ela que ele queria fazer uma surpresa de dia dos namorados. "Pra você é Dona Suzi", ela devolveu enquanto tomava de volta um documento que de nada servia e tornava a cruzar os braços.
Na delegacia, ele disse ao delegado que seu crime era amar demais aquela mulher.
O amor é lindo e transgressor.
Obs: esta história foi livremente inspirada na fotografia de uma matéria que peguei esses dias de um rapaz que foi detido pixando que amava a Suzi. Não abri o link para ler a matéria e ter minha interpretação pessoal para criar este conto. Trata-se de uma ficção e qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações da vida real terá sido mera coincidência. Apenas a alcunha "Suzi" foi mantida por conta da fotografia que inspirou as inquietações deste texto.