Amor que cabe no orçamento | Do Amor #137
"Acabou". As palavras saíam coalhadas da boca dela enquanto desenvolvia toda a teoria de que precisavam, naquele exato instante, em pé e pelados ao lado da cama, terminar o casamento deles. Ou o que quer que tinham juntos. Não eram marido e mulher no papel, tampouco na religiosidade, apesar de ele insistir, ano após ano naquela mais de meia década juntos, a vontade que tinha de vê-la vestida de noiva. Mas nunca conseguiram, juntos, salvar o suficiente para o festejo, mesmo que simples. Residiam numa casa modesta e há tempos as faíscas triviais foram se tornando arranca-rabos. E as discussões desgastantes, sequenciadas, orientaram aqueles dois ao derradeiro assunto: talvez fosse hora de se separar.
Naquela noite, chegaram do trabalho, ele primeiro, ela vinte minutos depois. Discutiram o motivo de os sapatos ficarem lá do lado de fora, ela queria uma sapateira, ele insistia no livre arbítrio de poder entrar de botas na sala. Tomaram banho juntos, apaziguaram os ânimos, ela deslizando os dedos nas costas largas dele, ele só de poder, mais uma vez, admirar a pele dela cheia de sabão. Mas o trabalho de preparar o jantar foi motivo de mais um entrevero, depois desanimaram um da companhia do outro porque ela queria escutar o Jornal Nacional e enquanto lavava a louça e mais uma vez ele só queria jogar FIFA 20 e esquecer das mazelas de viver numa cidade cilada com transporte público inoperante, venda irregular de apartamentos pela milícia e pessoas sem caráter caminhando de mãos dadas pelo shopping no Leblon. Na cama, mais tarde, transaram um sexo que mais parecia balão de festinha de criança, colorido e estufado, mas uns barulhinhos estranhos denunciaram que a brincadeira iria murchar em breve, e foi esmorecendo com uma mão pesada aqui, ressequindo com uma enfiada contundente demais, o silêncio embaraçoso, a falta de troca, de fluidos, de firmeza. Pararam no meio e ela foi tomar água. "Nem pra separar uma garrafinha", pensou enquanto caminhava passos sólidos até a geladeira, como se quisesse esmagar cada ovo no caminho. Foi e voltou se perguntando por que havia se ausentado o aconchego entre os dois? Como viraram dois pedregulhos em vez de pelúcias?
Retornou ao cômodo fazendo um bico enquanto sugava mais dois goles da garrafinha de água gelada. O ar azedo das janelas fechadas e a trepada mal dada, a escuridão machucando sua atenção, os dedos de unhas grandes dele dando de encontro aos dedinhos gelado dela. Os dois, parados e em pé aos pés da cama. Isso lhe lembrou a música do Chico. Mas não seria ela a agarrar os pijamas dele, até porque o reizinho estava nu. Ele se incomodou quando não lhe foi oferecida a bebida refrescante. Parado de frente pra ela, o nariz em riste, o pau não, questionou o que é que tava pegando, onde foi que os dois haviam ido parar naquela vida bandida. E daí começaram. Descascaram quilos de desilusões, empelotaram a conversa, empenaram as desculpas e, no emaranhado de perguntas retóricas, a breve afirmação dela: "acabou". Ele recebeu o verbo pelo baço, em fortes pontadas que somatizavam o recente desespero. Brigaram mais um tanto, derramaram as ofensas remanescentes e foram dormir. Ficaram de esperar o cantar do galo na manhã seguinte para decidir não mais o quê, mas o como. Com os cachos no travesseiro, fantasmas da época em que morava com a mãe começaram a assombrá-la. Não poderia retornar para aquela casa, não regressaria para a zona oeste nem a caralho. Ele, virado de costas para ela, com a cara virada para o descascado da parede, perdia-se em contas dos transtornos financeiros que seria a separação, preocupado com o não poder comprar um sofá caso ela quisesse ficar com o sofá, que teria, se quisesse se mudar, de vender o Playstation, que tinha trinta e quatro, e não se sujeitaria morar com mais pessoas. Como morar sozinha ganhando dois e seiscentos? Como mobiliar uma casa sozinho? adormeceram , ambos, em desconsolada agonia. Ele se levantou primeiro e fez café para dois, deixando a mesa arrumada para que ela pudesse escolher como preferiria seu pão, recém trazido da padaria, com margarina ou o resto de Nutella que ele havia reservado para si quando disse que ela era gulosa demais e acabava com todos os potes sozinha. Ela agradeceu quase que sugando o "obrigado", e desjejuaram quietos. E chegou a hora de se aprontarem para trabalhar. Botaram os olhos de um nos olhos do outro, bocas matando as últimas mastigações. Ele foi escolher a roupa do dia e ela entrou debaixo da ducha. Depois inverteram. Nem um pio havia sido dado. Na cabeça dos dois, calorosos debates embasados, prós e contras, retomadas, cada um deles justapondo as narrativas em que estavam cobertos de razão. E nada de alguém externar qualquer moléstia.
Na saída, enquanto ela segurava o portão enquanto ele tirava a moto, finalmente tomou coragem e perguntou algo. Mas não sobre o divórcio pré-combinado na madrugada anterior, mas algo sobre qual seria o horário de retorno dele. "Você pode comprar uma Nutella pra mim lá no seu Valdir na volta?".
Ele balançou a cabeça pesada do capacete para cima duas vezes e para baixo mais duas. E ligou a motocicleta quando ela empurrou para frente os lábios em sinal de uma beijoca agradecida. E foram trabalhar.
Amor que cabe o orçamento.