Abraça ela lá! Escuta o que ela tem pra dizer, babaca | Do Amor #173
Uma noite inesquecível. Foi o que chegou aos ouvidos dele enquanto sentia-se sendo puxado mansamente, mas com um bocado de interesse, para o sofá da sala. O corpo dela atravessava um tubinho preto arrancado do fundo do armário especialmente para aquela ocasião. Chegou de sapatos altos, mas no momento em que inclinou-se para dizer a ele que não havia encontrado um equívoco sequer naquele encontro, já estava apoiada em dois pés descalços no chão brilhante do apartamento dela.
O jantar havia sido pensado com zelo e antecedência. Luz de velas e pequenos pontos de luz amarelada, Todos os nove movimentos do disco Promisses do Floating Points com a Orquestra Sinfônica de Londres sendo tocadas nas caixas de som, as comidas favoritas dela bem apresentadas na mesa e dois espumantes repousados no balde com gelo. Organizou tudo como surpresa, pediu confidencialidade total do porteiro da noite e até das as amigas mais chegadas dela, que distraíam-na e conduziram seus pensamentos, comentando do vestidinho tal, dos brincões que ela nunca mais usou. E ele posicionado na ponta da mesa, aguardando a sentada dela, a primeira da noite, para comer e conversar. A muita pressão que seu trabalho estava exercendo sobre ela a deixou um tico distante nas semanas anteriores e a relação deu uma pequena escapadela dos eixos. Olhares disruptivos, silêncios desconfortáveis, a sanha de ele querer sempre o sexo enquanto ela repetia que, se fosse para gozar, seu vibrador com semelhança de coelho faria isso com mais facilidade e praticidade na cama dela. Sua cabecinha estava em outros lugares. Percebendo, então, as rusgas desnecessárias, o antecipar dos finais de encontros, as deixas de que ela necessitava de uma boa conversa, um bom papo, e não a ausência do sentir-se ser escutada, ele armou então uma noite especial como símbolo de um desculpar-se, se por-se presente. Apoiou o cotovelo na mesa e o queixo na mão para demonstrar com todos os clichês que estava ali para apoiá-la, ser o ouvido com o qual ela podia contar.
Ouviu-a, observou-a com atenção e sensibilidade, mudando feições conforme ela desabafava qualquer coisa mais densa ou quando ela soltava qualquer gracejo. Argumentaram sobre política, teorizaram o papel das pessoas no que chamaram de capitalismo tardio, imaginaram juntos futuros inventados e riram dos desastrosos desfechos de memórias dos tempos de colégio e faculdade. Comeram bem, beberam uma champagne e meio. Avistaram-se por entre taças e talheres de prata. Enquanto ela o levava pela mão até o sofá da sala, ele a puxou e dançaram dois para lá e dois para cá, no compasso da quimera que tomava conta do disco naquele instante. Transaram com ela sentada em cima dele, a segunda da noite, e depois de ladinho no tapete da sala. Quando viu sua garota, satisfeita e encolhida num quase ninar entre trepadas, dobrou a vestimenta pequenina que ela estava usando e, junto com suas roupas, foi até o quarto deixar tudo na poltrona ao lado da cama. Era um cômodo aconchegante, branco e pêssego que se fragmentavam nas paredes num recorte geométrico sem simetria, mas agradabilíssimo. Acendeu o abajur, depositou as roupas onde havia planejado e, nem bem piscou duas vezes, estava parado diante da gaveta de canto, do lado dela de dormir. Segurou o puxador com as mãos molhadas, a língua se contorcendo grossa dentro da boca. Trouxe, numa só puxada brusca, a gavetinha para perto de si. Lá estavam alguns remédios, um caderninho tipo moleskine vermelho cheio de post its coloridos provavelmente demarcando informações importantes. E, mais lá no fundo, o brinquedo dela, com a forma semelhante a um coelho, repousando no escuro dos esquecidos. Com o queixo projetado para frente e a vaidade tosca de quem olha as coisas de cima para baixo, comentou em voz alta: "você faz ela gozar? Vai lá então! Abraça ela lá. Conversa com ela. Escuta o que ela tem pra dizer". E, num só solavanco, sepultou a conversa de mão única fechando a gaveta. "Babaca", sentenciou antes de sair do quanto, parecido com cachorro que cisca para trás o chão depois de marcar território.
Quem tem medo desse tipo de amor?