Ele vai é acabar namorando de novo aquela vagabunda | Do Amor #172

Quando jovem, sentir o chão frio com os pés descalços lhe era a maneira mais aprazível de iniciar o dia. Mas aos setenta e três, por necessidade e elegância, caçava com os dedinhos o chinelo apantufado amarelo bebê que ficava aos pés da cama. Podia levar o tempo que levasse, sete minutos, meia hora. sentava-se confortavelmente, descia as pernas com cuidado e tateava o solo atrás de alguma superfície acolchoada que pudesse traspassar até encontrar o fim quentinho do túnel. só daí podia se levantar e iniciar seus afazeres. 

Ligava para a filha avisando da necessidade de trazer mais leite, trocava de roupa e escovava os cabelos curtos e ralos com um sorriso singelo no rosto que há muito já tinha tudo feito. Restava desfrutar dos dias que lhe restava. Mas naquela semana o toque estridente do telefone desfiguraria a tranquilidade daquela casa. Era o aviso da morte. A dona Mercedes havia falecido. "Infarto mesmo. É. Chegaram na casa dela e tava lá a coitadinha, caída no chão da cozinha". Quem recebeu a notícia foi sua filha, que recebeu o telefone das mãos da empregada. Quando retornou à mesa, disse para a mãe terminar o café, se alimentar bem, e só depois contou do ocorrido. Enquanto as palavras escorregavam pela boca dela, viu a mãe empalidecer, o ruído tremelicado do encontro entre xícara e pires se intensificou e precisaram, por precaução mesmo, abanar o jornal da manhã em frente ao rosto emocionado da senhorinha.

Tudo já havia sido feito, os rituais finais estavam concluídos. O telefonema fora mais para prestar contas aos mais chegados. O velório, o enterro. Tudo consumado. A velhinha subiu para seu quarto em silêncio, com a vigília da filha na soleira da porta para quaisquer eventualidades, se trajou toda de negro e passou os dois dias seguintes assim. Manto na cabeça, silêncio cerimonioso, mesuseiro. Não ligou a tevê e nem se deixou ser levada para o rotineiro banho de sol no quintal. Introverteu-se como uma espécie de caramujo em um telheiro de solidão. No jantar do terceiro dia, a testa da matriarca era só rugas. os olhos caídos com a parca atenção nos rejuntes do piso, a boca em constante movimento ritmado, como se mascasse uma boa dose de cólera entre os dentes postiços. A filha notava, na visita noturna, os nódulos gordos dos dedos velhos da mãe dando contra a fórmica na mesa. era uma raiva senil, débil, mas ainda assim, uma raiva. O que não era verbalizado ficava só na cabeça da mulher, as cenas se repetindo, memórias em tons pastéis de um tempo em que ela não era viúva porque ainda nem tinha se casado. As mãos firmes dele na coxa de uma ainda menina Mercedes. O jeito que o Norberto, seu futuro marido e que a deixaria viúva aos sessenta, olhava para sua concorrente. Naqueles dias, lhe  embrulhava o estômago perceber o empenho que ele tinha para esperar a Mercedes depois da missa. A perseverança dele para conseguir, enfim, ter com sua paixonite cinco minutos na praça. Foram namoradinhos açucarados, peguentos, detinham um amor sedoso e lírico, davam passos combinados, o bracinho cor de rosa dela fazia encaixe perfeito na manga do paletó branco dele. 

No final, quem casou com o Norberto foi ela, e não a Mercedes. Quem chorou na quina do caixão dele foi ela. Mas agora ele tinha morrido. E a Mercedes também havia partido desta para uma melhor. E essa melhor era ao lado dele. "Agora os dois vão ficar juntos lá no céu", balbuciou sem se perceber ouvida pela filha, mas numa tonalidade tão tacanha que não se fez entender. "Que céu, mãe?, escutou e, ao se ver de volta nos dias atuais, rechaçou o papo da filha com um movimento de mão que parecia espantar mosquinhas de frente da cara feia.

E mudou de assunto.

Jader Pires