Não tô mais afim | Do Amor #193
O corpo nu dele, os braços pálidos em jarra e a débil expressão de dúvida em seus olhos. O que preparar para o café da manhã? Qual cereal atrairia melhor as boas vontades do processo intestinal dele naquela manhã de domingo? Ela apareceu silenciosa no batente da porta e ficou espiando a construção ridícula da cena que se desencadeava diante de si. Não chegou nem a ser uma epifania, a centelha de uma conclusão que se alastra em nossas cabeças até que a verdade se ilumine óbvia e feroz. Não. A conclusão a que chegara era leitosa, esfalfada, quase como que escorrendo sob seus pés. Não sentia mais nada por seu marido.
Tinha diante de si não mais o homem por quem um dia sentiu vontades ou se sentiu preservada. E nada tinha a ver a musculatura irregular que lhe compunha, a linha de raciocínio labiríntica dele que passou a irritá-la depois de meia década debaixo do mesmo teto. Tudo isso se releva ou se suplanta, com alguma conversa ou completa omissão. Mas, ali, acompanhando o acumular na mesa de leite e pacote de pães, não era cólera ou repulsa que dominava os pensamentos dela. Não estava tomada de qualquer asco, pena, nem mesmo uma fatia de frustração de se imaginar apegada, comprometida com a figura estéril que se mexia de um lado para outro na cozinha que, em algum momento, decoraram juntos. Se fosse isso, pensou tentando botar em palavras a ausência de sentimentos, se fosse raiva ou decepção, correria para os braços de outro, pediria em vingança velada para que fosse comida de maneiras que nunca se deixaria ser comida por seu marido, se deixaria ser devorada por qualquer estranho que lhe desse oi no trânsito ou para o porteiro do curso de pintura que faria às terças e quintas. A indiferença que se instalou nela era tamanha que o ato de terminar a relação lhe parecia fatigante demais. Não encontrava caminhos cabíveis para explicar o porquê de se separar. Ela não queria nada, não queria nada com ele, verbalizar já seria um labor. Então permaneceu inerte na entrada da cozinha, calada e cheirando a desânimo.
Seus olhos percorreram os azulejos brancos, a luz desbotada que vinha da janela, um homem desvanecido ciscando há minutos sem perceber a presença dela. Ele nunca fora um ser humano solar, afoito. Não era essa perda de brio que se chega com a idade que a pusera daquele modo, indiferente, não foi o tesão esgotado, expectativas exacerbadas de uma vida sem arroubos, nada disso, ela nunca teve aguardos de se aventurar com ele, nunca esperou façanhas ou surpresas. Nem conseguia formatar um caminho de esgotamento, de se perceber menos interessada, mais dispersa com seus desejos. Não era uma relação se estatelando em escombros. Foi abrupto. Levantou-se, como sempre se levantava, escovou os dentes e lavou bem o rosto com a água mais gelada da pia, como sempre se lavava antes de sair para o mundo e, ao parar diante da cozinha, percebeu não ter mais interesse no marido. Nem curiosidade, nem desprezo. Era como se aquela pessoa que se deitava todas as noites ao lado dela, em um virar de madrugada fosse transmutada em um estranho qualquer que a gente esbarra no shopping lotado e nem percebe, qualquer figurante nas fotos de festa que a gente tira e nunca repara, ele era, de repente, a tia da limpeza num edifício comercial de quarenta e sete andares que, se caísse lá de cima da cobertura, da sala do CEO, só dariam conta de sua existência quando o terceiro holerite seguido não fosse assinado. Se seu marido a olhasse de volta e resolvesse, mudo, sair de casa como estava, pelado, descabelado, jeca, caricato, ela tomaria uma caneca de café puro e iria ao parque. Ler um livro, se afastar das horrorosas notícias da internet. Talvez caísse no sono, não teria tanta certeza disso, comeria qualquer castanha que houvesse perdida na bolsa, relembraria trechos de partituras de quando tentava aprender a tocar violino na adolescência. Voltaria para casa, tomaria um banho demorado, dobraria a roupa que já devia estar seca no varal. Dormiria o sono dos comuns, acordaria no outro dia, como acorda todos os dias em qualquer dia. Quando morresse, não teria arrependimentos nem saudades, não seria enterrada ao lado de ninguém. Seu corpo padeceria para as larvas e os insetos sem o menor pudor de nunca mais ter se lembrado de um dia ter sido tocado por aquela pessoa.
Quem era ele mesmo?