De gole em gole a gente chega a, sei lá, lugares | Do Amor #212

…só fode mais se você continua apertando assim. Mas se eu não fecho pode entrar água. E seguiram uma conversa toda retorcida que tirou um bom naco do tesão. Já tinham muito pouco a favor, o estrobo que os fazia ver as imagens em frame um do outro, fotografias frias que tentavam guardar na memória. Ela usava cabelos presos e tinha um par de brincos redondos daqueles enormes dançando em cada uma das orelhas. Ele mexia bastante as mãos no alto quando fingia empolgar-se com as novas músicas que o DJ botava para tocar. Precisavam falar alto, ela encaixando atenção entre comentários dele, o grupo das amigas que não podia se afastar muito, e maneiras ardidas de contrapor-lo para deixá-lo irritado. As sobrancelhas imorais dele, grossas e escuras, quando se dobravam em contragosto aos dizeres dela, eram esses instantes que faziam o começo da noite valer e fazer ela soltar risadas brilhantes cada vez que a luz piscava forte na cara dela.

Discutiam, àquela altura, sobre a torneira. Entraram no banheiro aos solavancos, empurrados pelos braços dela contra o peito dele. Mastigavam os lábios um do outro, se alimentavam da violência de um contra o outro, queixos de cimento, quadris farpados dando cutucadas em frente a um enorme espelho propositalmente convexo que fazia ambos parecerem ter mais de três metros de altura. Antes disso, bateram boca no bar, ela defendendo o fernet, ele afirmando sua certeza de ela ser peixes com escorpião, não que soubesse de signos, apenas por ter ouvido do Renato que essa era das combinações a não se brincar. Mas foi ele, lá, na minada bancada ter com ela. O primeiro beijo foi na pista, ouvindo uma versão acelerada da Gal. Nesse ponto, pareciam siameses, os passos concordando em tudo, os olhos numa coesão quase religiosa, amigos, parceiros, devotos.

Quando ela voltava para a rodinha das mina, confessava das habilidades dele, tirava sarro da gola amassada, dava desculpas para si mesma de que, se já tinha beijado, não havia mais porque ir atrás dele, mas quando ele aparecia com mais um fernet nas mãos, um tratado não dito para acompanhá-la na saga do destilado, ela novamente se aproximava e o ciclo ganhava novo fôlego. Para um desconhecido, em vez de recrudescer, ela via naqueles instantes lugar seguro para verbalizar discrições que normalmente guardava para si, afinal, não voltaria a ver aquele tipo, então, ele que ficasse com algumas das vergonhas dela. Quase o abraçou quando ouviu-o dizer o eu te entendo, mas segurou os ímpetos para não dar combustível para o possível esquerdomacho. Mas não segurou os braços quando os entrelaçou sobre o pescoço musculoso dele quando o moço apareceu novamente com um baseado tão grosso que parecia ser um sexto dedo na mão levantada dele. Uma tragada na maconha, uma chupada na língua lisa e gelada dele e duas bicadas em mais um fernet, o combo completo. Arrastou-o para o banheiro, se assustaram juntos com a imagem angulosa que viram dos dois, a bunda de alguém abriu a torneira que teimava em não parar de gotejar, mesmo depois de fechada. Levaram ainda alguns minutos para perceberem que já havia um vazamento, o pinga pinga não seria resolvido por dois clientes, mas por um encanador, em algum outro momento.

Lá fora, no boteco em frente à noitada, ela ainda experimentou beijar mais dois caras. Viu que ele viu, sentado com amigos numa mesa já na calçada. Chegaram a dançar juntos outra vez, na beirada da rua, eletrizantes, inauguraram uma nova pista na esquina do boteco, eles e mais meia dúzia obedientes aos delírios do pagode que chorava na jukebox. Lá fora, ela jogou tudo pro alto e resolveu misturar, passou a tomar cerveja suada nas saboneteiras que ele fazia questão de esfregar as bochechas, levar para casa os gostos dela. De gole em gole eles dois, nós todos, eventualmente chegaremos a algum lugar.

Não havia pressa, naqueles dois, em viver.

Jader Pires