A gente precisa de boas parcerias | Do Amor #213
Chegou no portão de casa empapada. Desceu do ônibus calorento e pôs-se na direção que apontava os olhos, uma caminhada quase sem valentia pela rua meio escura. Precisava de água.
Lá dentro, um silêncio estranho. O garoto, já era para ele ter retornado da escola e o marido chegava do trabalho, comumente, antes que ela. Não tinha rádio ligado e nem os barulhos do videogame faziam incômodo. Entrou pelos fundos para chegar mais rápido na cozinha e, de lá, dava pra ver a porta do quarto do filho fechada, sinal que ele poderia estar em casa, e a luminosidade tristonha de um abajur na sala. Com entonação de pergunta, ela chamou pelo Geraldo, seu marido, que respondeu com um singelo “tô aqui na sala”.
Estranho. A comida morna no forno do fogão como de costume, as obrigações de limpeza pareciam estar também em ordem, mas faltava vibração familiar, vontade de viver. Seu dia minguava sem uma bitoca de boas vindas, um apertão na bundinha também sedenta por um tabefezinho querençoso. Um clima acinzentado pairava naquela residência. Na extremidade oposta da entrada estava, na pia, o filtro de barro e, sobre ele, um paninho todo desenhadinho em ponto cruz, uns elefantezinhos com bolas na ponta de cada tromba. Botou o copo debaixo da torneirinha e ficou a ver navios. Nada. Nem uma gota. Neca de pitibiriba.
Na geladeira, nada também. “Ninguém teve coragem de colocar água na maldita da cabaça?”, bufou com a garganta seca. O Geraldo, seu marido, lia as notícias moribundas do jornal da manhã com uma cerveja suando no vidro da mesa de centro. “Mas tem água no filtro”, respondeu num tom maquinal. “Como que tem água se não sai uma gota, Geraldo? Faz semanas que isso vem se repetindo, eu peço pra vocês não esquecerem da água, tá fazendo um calor dos diabos lá fora e tem dia sim e dia também, que eu chego e tá sem água pra beber”. Sem mover o caderno do cotidiano da frente da cara, ele responde com a voz inalterada: “eu não quero falar sobre isso”.
Impotente, ela seguiu para o corredor. Bateu no quarto do filho e entrou para encontrar o garoto com o rosto inchado de tanto chorar, esmorecido na cama. Ao ser questionado, o menino confessou que queria estudar na sala pela boa iluminação do final da tarde, mas foi expulso pelo pai. “Vou fechar aqui a cortina. Vai estudar no quarto que agora só pode estudar lá”. O filho completou ter ainda insistido, mas foi contido e expulso com socos e pontapés até o quarto. Isso não poderia ficar assim. Ela levantou-se num pulo e embarafustou novamente pelo corredor até a sala. Lá, o Geraldo continuava impávido com sua leitura noturna. Ela bradou, xingou, questionou onde já se viu tratar estudante assim com tanta truculência, um jovem que só queria boa luz para seus estudos. “Mas ele está lá estudando, não está?”, indagou um Geraldo pacato. “Não vamos mais falar disso, tá?”, finalizou.
Ela pediu as chaves do carro com as mãos tremendo. A voz já embargada parecia ficar bloqueada entre os dentes cerrados. Queria as chaves e levaria o filho com ela. “Não vai adiantar, o portão ainda está com o cadeado emperrado”, disse o Geraldo. Há meses a tranca engoliu um pedaço da chave e nunca foi trocado, nenhum chaveiro foi acionado, nada. Não havia transporte, foi manifestado pelo Geraldo que, no máximo, trocava o pé de apoio cruzando uma perna pela outra.
Ele dobrou o jornal, pousou o periódico no sofá e pegou a cerveja com a lata molhada para mais um gole. “Esses caras lá em Brasília. Que bando de sem vergonhas, hein?”.