De todos os amores, eu caí foi no seu | Do Amor #214

Quando despontaram os primeiros fios de sua barba, ao tio Alberto lhe foi presenteada uma navalha Staright de ponta holandesa. Rejeitou os barbeadores elétricos, não sujeitaria seu rosto aos aparelhos vendidos em plástico. Perfume, sempre o mesmo, Hero, com notas amadeiradas de cedro, zimbro e pimenta realçada pela bergamota. Essência apropriada ao clima quente e úmido de Boa Vista.   

O homem trajava sempre linho ou algodão, jamais se enfiara em fios sintéticos. Caminhava pela avenida Jaime Brasil repousando o costumeiro cigarro entre os dedos nodosos.

Havia namorado todas as meninas da cidade, diziam. Os olhares nostálgicos que as esposas dos amigos davam vestígio. Não era um cafajeste, o tio Alberto sempre jurou de pés juntos ter amado todas elas. Era falar um nome e, sem nem direito piscar os olhos, ele dava duas ou três palavras que denunciavam alguma peculiaridade da ex aventura, um odor, qualquer trejeito feminil que ele guardava na mente, mais que como troféu, uma maneira de deixar salvaguardado respeito devido a todas elas. Escreveu poemas, cantou debaixo da Mangueira na Ataíde Teive canções de amor quando uma de suas damas foi-se embora emburrada avenida abaixo. Foi ele que a presenteou com o primeiro Simone de Beauvoir, botando com letras finas na dedicatória “Ritinha, quero ser o segundo sexo dessa relação”.

Casou-se com Ana Clara, católica fervorosa. Com ela rezava rosários, participava de procissões e novenas. Ajudou na preparação do arraial de São Sebastião. O padre até o convidou para se tornar diácono, aos suspiros da imaculada Clarinha. O tio Alberto sempre dançou conforme a música. Era um para cada uma delas, amorficamente delicioso para quem o devorasse.

Tempos depois, chegou na cidade uma moça de São Paulo, cabelos acima dos ombros, falava alemão fluente. Era jornalista e passou por Boa Vista para realizar uma reportagem sobre o Garimpo. E ele a recebeu para acompanhá-la em sua trajetória de trabalho. Comentou que, naquele meio de anos oitenta, o aeroporto da cidade era o mais movimentado do país. "Sabia disso, Dona Malu?", ele dizia com um bico doce, quase passarinhando uma canção nos ouvidos da moça. Era mais forte do que ele, por óbvio. Acompanhou a jovem repórter nas visitas aos garimpos e lá conheceu Lívia, uma jovem prostituta paraense que roubou de imediato o coração do nosso tio.

Malu voltou para São Paulo com o cheiro do perfume Hero impregnado em todos os seus vestidos, cada uma de suas calcinhas. Dias depois, o tio Alberto largou a tia Ana Clara e se casou com Lívia, a prostituta do garimpo. Mudou-se para a Benjamim Constant, mais conhecida como a Rua do Ouro, e montou nova vida. Fazia de um tudo para ter como dar a vida boa que sua nova mulher merecia. Não queria mais vê-la se vendendo, seria, e que todo mundo no mundo visse, a rainha do ouro. Num dia, depois da chuva, ele saiu de casa e, passando lenço na ponta dos sapatos, avistou ao longe uma moça deslumbrante caminhando no fim da tarde. Vestido curto e colado, revelando suas formas, sandália de tiras amarradas no tornozelo. Os raios de sol poente riscavam seu corpo de luz e sombra. Parou para amarrar as sandálias sem o menor recato. O tio Alberto estava saindo do Fórum Sobral Pinto, quando avistou a dama iluminada. Apressou o passo e ofereceu apoio para que pudesse se equilibrar.

Ele a olhou, não disseram absolutamente nada um para o outro. Meu tio passou a mão por sua cintura e desceram a avenida. "E o que que vai ser isso?", ela finalmente perguntou, antes mesmo de saber o nome do homem que a levava. "Esquece isso. O que a gente tem não tem nome", ele respondeu já completamente hipnotizado. Não levou roupas, nem assinou documentos, deixou carta alguma. Até o cheiro do perfume Hero desapareceu. 

O tio Alberto foi encontrado morto dezessete dias depois numa estrada da saída de Bonfim, fronteira com a Guiana. 

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Obs.: este texto é uma releitura de um conto escrito por uma de minhas alunas, a Andréa Estevam, uma escritora de poesia e prosa lá de Roraima. Ela escreveu um conto para o meu curso de escrita que relatava a história de um homem e suas seduções no decorrer dos anos. Eu acabei reescrevendo a história com algumas reviravoltas, inclusive o final bem diferente, e vi a oportunidade de trazer o texto pra cá, um perfeito Do Amor. E aqui está. Claro, o reescrevi de cabeça, pegando coisas minhas e vestindo por cima do mote da história dela. Os nomes das personagens são quase todas da versão original dela, as maioria das ruas e dados de Boa Vista também. O Perfume Hero é construção exclusiva dela, que aparecia uma vez no texto e eu trouxe como um personagem permeando as vivências do homem. Ah! O livro e a dedicatória vieram direto da história dela. Todo o resto, inclusive o final, foi refeito. <3

Jader Pires