A gente ainda vai se amar demais! Estamos aqui! | Do Amor #195

Despertar no alvorecer fazia os olhos Samuel parecerem grudados com alguma espécie de cola. Não lhe era agradável, mas quis o destino que sua profissão de coveiro o pusesse de pé mal o sol despontasse ainda esbranquiçado no horizonte. O telefone tocou e ele teve de atendê-lo. Por isso a batalha matinal de tentar apartar, contra a vontade delas, as pálpebras das enormes bolsas arroxeadas que colecionava debaixo dos olhos. Mas o fez sorrindo. Trocou logo o silêncio pelas palavras e, enquanto espichava as pernas magras pelo lençol, pôs-se a entoar um velho bolero. Era chegada a hora das canções bonitas.

Morava nos fundos do Cemitério das Almas, ele e o Silvio Santos, cão vira-latas que o despertava com gandaieiras lambidas na sola do pé enquanto ainda estava escuro. Sentou-se na cama achando graça de, horas antes, ter ido dormir pesaroso como um prisioneiro no duro leito de pedra. A Mariazinha, uma fera, tinha arranhado toda a extensão das costas dele num rompante de fúria. Unhou-o com a fibra dos enciumados e a certeza do fim. Se tinha algo que pudesse fazê-lo desistir das tentativas de remediar relações era a violência. Nunca vira seu pai erguer o tom de voz para a mãe, nem presenciou a mãe usando as mãos cheirando a água sanitária contra qualquer dos desarranjos do pai. Só sabia resolver transtornos, pelejas e querelas no falar, nem sempre manso, não era um bobão, mas sem nunca ter brincadeiras de mão envolvidas. Mas, naquela noite, a Mariazinha ignorou essa regra única e partiu raivosa pelas costas dele. Samuel só se encurvou e gemeu baixinho. Não tanto pela dor, mas percebendo que aquele salto significava que ele estaria solteiro na manhã seguinte.

Bebeu uma xícara cheia de café e só. O pedaço de pão que havia deixado no saco o Silvio Santos comeu ao puxar da mão dele num momento de descuido, quando pescou, ou melhor, foi fisgado mais uma vez pelo anzol das lembranças. Mas colocaria um ponto final no desgosto. Sabia de abrir buracos para enterrar mortos como ninguém, fazia isso com o trágico evento da noite anterior. Naquela manhã, depois de receber o telefonema da prefeitura, só o amor e a compaixão poderiam entrar em sua morada.

Depois de tanto trabalho nas sobradas covas da pandemia, as primeiras semanas de intenso trabalho, diurno e noturno, os caminhões com enormes refletores para fazer avançar o trabalho. Os anos de trevas, o acostumar-se com a matança, o distanciamento. Mas não naquele dia. Naquela manhã, obrigação alguma o chamava. Se sentaria no gramado em frente a casa dividindo pão dormido com os dentes brancos demais do Silvio Santos. Cantaria. Ligaria para a Mariazinha contando dos seus perdões e do seu intenso amor, chamaria ela de Mariazinhazinha do coração dele e a convidaria para andar na praça, tomar com ele um sorvete. Poderia gritar "Eu te amo! Eu te amo!" e ver o Silvio Santos latindo excitado caminhando ao lado deles. Não havia trabalho. Não foi chamado. Na noite anterior, não morreu ninguém.

Obs.: sim, isso não quer dizer ausência de vítimas pela doença, a notícia deu-se num final de semana, que costuma ter casos represados, mas cacete, vamos dar essa alegria pra gente, vamos? Vamos. =)

Este texto foi escrito inicialmente como outra história, sobre um coveiro que acordava ressabiado por ter que exumar um corpo sendo que sua profissão o ensinada a enterrar corpos, e não tirá-los debaixo da terra. No início da pandemia, o Itaú Cultural fez um concurso de micro contos com tema do que queríamos esperar pra depois da pandemia. Escrevi sobre o coveiro que acordou sem ter que enterrar mais ninguém. Agora, com esta notícia de um primeiro dia sem registro de mortes, retomei o conto e o ajustei. O Samuel tá feliz, a Mariazinha vai ficar feliz e eu também tô feliz com tudo isso.

Jader Pires