Mandei ele pra terapia e ele foi | Do Amor #196

O foda é que ele me comia direitinho. Então eu acabava me esforçando pra que ele fixasse bem. A gente sempre transava na minha casa, ele perambulava pelo apartamento, despido e cru, falando bem da minha orquídea que finalmente desencantou e explodiu em flores no meio do verão, ciscava com carinho os pés no tapete felpudo e me cravava os dentes nas costas se eu não respondesse às carências dele de imediato. O celular dele já estava há tempos pareado na minha caixa da JBL, então, depois de trepar, não era incomum ouvir lá na sala algum dos discos que ele estava escutando, Marina Sena, Bad Bunny, sempre alguma coisa jovem que me fazia fisgar uma pinçada idosa nas costas, meio culpado de estar pegando um garoto sei lá, quase uma década mais novo que eu.

Daí pra eu passar a abusar das boas vontades dele também foi um pulo, mandava mensagens com listas de compras para ele me trazer, que eu sempre pagava de volta, em dinheiro, meu boquete sempre foi grátis, mas deixava ele subir o elevador com minhas sacolas, apontava onde ele poderia guardar cada um dos itens, a toalha para ele tomar banho já ficava pendurada lá no banheiro e, fresco da ducha, ele me comia. A gente assistia alguma série também, passeava pelo bairro de braços dados, ele pedia para eu filosofar mais sobre as minhas leituras do James Baldwin, que ele passou adorar depois das minhas indicações de leitura, sobre como ele era um gênio em desenvolver diálogos e deixar a gente imerso no tempo do diálogo, se a Cass e o Richard de Terra Estranha ou o David e seu namorado brigam no Quarto de Giovanni por meia hora, a gente lê em dez minutos mas com a sensação de estar lá na leitura a exata meia hora. Eu gesticulava e ele abraçava um dos meus braços, caminhando para frente e me levando de volta pro meu apartamento. A gente trepava e dormia. Ele chegou um dia e me propôs ter um gato na minha casa, botaria o nome de Rufus nele. Claro que eu me insurgi contra aquela invenção, nem fodendo que eu atrelaria a nossa relação a um animal que eu certamente não cuidaria. E, ao dizer a palavra relação, ele sumiu por três semanas. Eu não pude contatá-lo pois não sabia onde ele morava e seu telefone ficou desligado todo o tempo, inclusive sem atualizações nas redes sociais. Eu o vi novamente no portão do meu prédio, de blusão escuro com capuz cobrindo a cabeça, como se fosse um bandidinho, um ex-viciado em busca de remissão. A gente subiu e transou antes de começar qualquer conversa. Ele estava com o cheiro dele mais acentuado, tinha parado de raspar os pelos do peito e aquilo tudo acumulava um odor que tinha me deixado maluco. Eu queria machucar ele. Mas foi ele quem me torturou.

A gente voltou a se ver, ele voltou a frequentar meu apartamento, a organizar minhas latas de atum, a acarinhar minha orquídea chuva de ouro. Só que o fato de eu não saber nem onde ele morava, como ia embora para casa, se ele tinha família, tudo isso começou a perturbar a minha mente, fincar incômodos entre meus dedos dos pés. Quando achei, no meio de umas horas de preguiça abraçados no sofá, uma possibilidade de abertura, perguntei das intimidades dele que não me envolviam. Senti na hora a musculatura do peito dele, do pescoço, ficar tesa. Não deu vinte minutos e ele arranjou qualquer razão para precisar ir embora. Mais duas semanas e tantos dias sem saber dele. No retorno, depois do sexo, eu comentei que essa fragilidade dele na questão da minha aproximação não tinha qualquer fundamento. Os olhos de redoma dele, brilhantes, me escutavam com atenção e concordavam com minhas palavras. Mas a boca dele retrucava tudo aquilo ser um medo descontrolado e irracional. Eu entreguei a ele minhas intenções de que ele fizesse terapia. Claro. Um analista auxiliaria horrores o temor desconhecido dele. E a cada sessão, assim mesmo como se alguém tivesse proferido um passe de mágica, retirado com as mãos potes e potes de inseguranças do rapaz. Cada vez que o revia, parecia estar mais corado. E, num jantar, a gente não tinha nem trepado ainda, ele disse que ia dar uma sumida. Mas tentou me tranquilizar, a mão grande dele parecia um pedacinho de nuvem sobre a minha. Disse que se afastaria porque o terapeuta dele o fez enxergar que a dependência que a persona dele tinha da minha persona não era lá muito saudável, que depender de alguém mais velho pra enxergar o mundo que ele precisava ver com os próprios olhos ajudaria pouco ou quase nada nas experiências de vida dele. Para o crescimento dele.

E sumiu. Depois de um mês e pouco vi uma atualização de foto no Instagram dele, uma praia e quatro canelas sendo banhadas pela água do mar, quando eu dei um like, ele me bloqueou. O psicólogo dele simplesmente falou para ele parar de falar comigo.

Jader Pires