A vida é muito curta pra não se distribuir afeto | Do Amor #197

Eu conheço um cara que uma vez ficou com uma mina. Depois de dois beijos no escuro de uma esquina suja, eles saíram de mãos dadas, aquela caminhada serena entre bares, a leveza que precede a foda do final da noite. Mas, nesse passeio, ele foi notando os nós dos dedos dela tremelicando em pequeninos espasmos, mas ainda assim, notados pelos carinhos da mão dele. Perguntou se estava tudo bem, ele comentou saber que a cidade não andava lá das mais seguras, que até teve, antes, a ideia de deixá-la mais a salvo de qualquer doidinho em cima de bicicleta colocando-a na parte de dentro da calçada enquanto ele transitaria mais para o lado do meio-fio. Mas notou não ser isso o que a afligia. Deu mais uns bons passos em silêncio para que ela se encontrasse nas palavras, compreendesse a melhor maneira de contar para ele dos temores dela. O comprimir das falanges dela seguiu acontecendo até que ela parou na calçada e despejou. A boquinha linda dela revelou um mal estar com o fato de eles transitarem de mãos atadas, como um casalzinho apaixonadinho qualquer, sendo que eles não tinham nada um com o outro, que estavam apenas se pegando na penumbra enquanto trocavam de bar para depois, quem sabe, transar. Mas que as meiguices do polegar dele fazendo um vai e vem querençoso na mão dela, era incômodo. E seguiu confessando que o desconforto não era pela atitude fofa dele, mas justamente por ela estar se sentindo incomodada com a brincadeira agradável.

Alguém contou pra alguém que contou pra alguém que isso não poderia acontecer, que dedos entrelaçados em espaço público seria apenas destinado aos apaixonados, seja lá o que isso signifique, um mimo apenas cedido aos corajosos que se entregam a uma relação amorosa, como se uma pessoa brincando de beijar outra pessoa fosse, no máximo, o free trial, uma versão grátis que não contemplasse o afeto. E a vida é muito curta pra não se dar afeto. Nesse quesito, eu sou tipo a Bruna Surfistinha. Hoje eu não vou dar, vou distribuir.

A gente precisa, de uma vez por todas, nos lembrar constantemente que não tá nas mãos de ninguém os mandamentos, pergaminhos ou mapas para uma relação começar ou funcionar. Os únicos com poder para determinar regras e maneirismos numa relação, seja ela qual for, mas vamos nos ater nas amorosas, são os envolvidos. Dois ou mais. A gente gosta de carinho? A gente vai trocar carinhos, pois. Botar os cabelos dela atrás da orelha, se isso não for um incômodo pra ela, claro, bater os joelhos nos joelhos debaixo da mesa, cruzar sorrisos, oferecer água e chuveiro e cobertinha depois de dar umas. A gente deveria andar de mãos dadas até com a tia que desce do busão depois da gente. Que conversa é essa? 

Foi esse o argumento que meu amigo colocou para a garota que passeava com ele. Que o nosso amor a gente é quem inventa e investe, Depois se desculpou, até mais consigo que com a garota, por botar um verbo tão mesquinho quanto investir numa troca bem mais gostosa que a de valores. Se virou para ficar de frente para ela, o quadril dele empurrando o quadril dela passo sim outro também até um novo escurinho e se pegaram mais um tico. Passearam mais alguns dias depois, e não se viram mais. As mãos dele ficaram gravadas nos pequenos lapsos que ela tem quando se lembra dos bons momentos nos anos anteriores. Aquele cara que ela pegou no boteco, como era o nome dele mesmo? Morava ali depois da igreja, na avenida, era como mesmo? Será que ele ainda mora lá? Meio bobinho, mas um fofo.

A gente também lembra das coisas boas. 

Jader Pires