O pai de todas as dores | Do Amor #198
Em uma situação normal, conversaria. Botaria ponderações na mesa para que os envolvidos encontrassem a melhor maneira de resolver o impasse. Mas aquela não era uma situação normal. Então sua ação foi meter as mãos por entre as blusas de moletom na gaveta e arrancar de lá o saquinho plástico cheio de cocaína. Afundou a narina direita nas três carreiras mal enfileiradas na mesa de cabeceira assim que teve a chance. Cutucou o montinho nevado com a lixa de unha da esposa até formar três linhas gordas e puxou raivoso. O movimento feito logo em seguida foi o de colocar entre as pernas a arma carregada.
Receber a notícia da filha morta, sozinho em casa, desempregado já com mais de seis meses, ainda por cima não pela voz de ninguém, a ligação que nunca chegou, mas uma mensagem gelada, um terceiro dando o aviso do acidente. Uma queda, lesão grave, o ferimento foi além do… arremessou o celular contra a parede e saiu em disparada. Cheirou, armou-se e, na rua, rezava a ave maria em voz alta pedindo para que algum desavisado apenas tropeçasse nele, para que tivesse motivo o suficiente para abrir fogo, esmagar contra o asfalto o crânio do desconhecido, escurecer sua visão daquela luz do sol de verão, violenta. Como é que poderiam ter levado sua caçula, quem foi que deixou acontecer aquela tragédia, a desgraça de toda a sua vida, deus abandoná-lo à própria sorte, ele já estava acostumado, não ter pai nem estudo, abandonado pelo sistema, pela escola, mas sua filha, a pequena não tinha culpa de nada, as trancinhas que ela insistia que ele as fizesse, só ele as apertava forte o suficiente para ficar bonita, morta, cortada, aberta, quando mais palavras lhe chegavam à mente, mais ele mastigava os dentes prestes a quebrar dentro da boca. Entraria no hospital sem dar oi, sem perguntar onde ficava a ala da urgência pediátrica, atiraria no primeiro filho da puta com roupa de médico que não se esforçou o suficiente para salvar sua criança, alguém fumando lá fora, tranquilo, com ou sem uniforme, mataria todas as pessoas que não estivessem profundamente enlutadas, que não soubessem o nome dela, que não arrancassem os cabelos e rasgassem as roupas ao descobrir que a menina dele não sobreviveu à queda, aos talhos feitos em seu corpinho.
Se fosse a filha do homem rico ela estaria salva. De banho tomado e vestidinho alvo, cheiroso e bufante, passando de colo em colo pelos seus entes queridos, o bai lhe beijando a testa, a mãe ajeitando-lhe as manguinhas nos braços, os tios fazendo bromas e algazarra, uma celebração à vida, às terceiras e quartas chances. Eles, os abastados, possuem todas as sortes. Pois seria ele a levar a urucubaca pra outras famílias, promoveria um massacre, botaria, também, morto no chão qualquer um que ousasse sorrir. Aquele era um dia de trevas. Mas, chegando no PS, fincou os dois pés na linha azul, a que indicaram ser a guia para o caminho que o levaria até os que cuidaram de sua filha. O corredor pálido e estéril do hospital deu nele tonturas, os gemidos sincopados iam crescendo à medida que avançava. Eram estranhos, pessoas desconhecidas, outros pais, sua mulher ainda não havia chegado, eram outros lutos por motivos de outros flagelos, leucemia, pré-eclâmpsia em parto antecipado. Algum menino morreu de tiro, ele ouviu da boca de uma enfermeira conversando com outra.
A dor dele era a dor do outro. Estavam ali, reunidos, os pais da tristeza. O que se passou com ele era nada perto do que passou com aquelas pessoas e tudo o que se sucedeu com ele era exatamente o que se sucedia com quem tava ali dividindo aquele espaço com ele. Ao ver, num canto exageradamente polido, um senhor sentado aos prantos, ele se encaminhou até o velho e o deu um abraço. Choraram por seus filhos, juntos. Tinham amor demais para não dividir um com o outro.