Minha mãe recebeu uma carta de amor | Do Amor #218

Me lembro do dia em que peguei a mamãe chorando, os braços apoiados na mesa da cozinha, a toalha encharcada de lágrimas. Ela tentou disfarçar quando cheguei, mas já era tarde. Tinha um papel sobre a mesa. Uma carta de amor.

Pouco antes eu, com alguns meses já passados dos meus doze, batia com força os pés no chão, as narinas dilatadas me provocavam espasmadas tonturas tamanha a carga de ar que invadia meus pulmões, os olhos verdes, mais claros naquela infância que hoje em dia, atravessados por microscópicos filetes sanguíneos. Eu havia vencido minha primeira briga na rua, dois sopapos certeiros nas têmporas e meu adversário, primo do vizinho do meu amigo, despencando no asfalto quente, no mesmíssimo lugar onde, mais cedo, eu havia desenhado com pedaço de tijolo colonial, em laranja, planta básica do forte que construiríamos, eu e os membros da nossa turma, um forte reforçado para proteger nossos bonecos soldados dos perigos do vilarejo. Mas o primo do vizinho desse meu amigo estava todo empolado rindo da gente, cuspia no chão e reiterava a cada meia volta que dava nos próprios calcanhares, que o nosso projeto era um lixo, que nossos bonecos eram incompetentes porque justamente éramos todos bobos naquela rua. Meus braços tremiam, eu lambia os lábios seguidas vezes, buscava falar mais alto que ele para abafar a truculência daquele estrangeiro, mas minha voz se apresentava cada vez mais embargada, o que arrancou uma gargalhada do garoto quanto eu tentei dizer que já chega, mas a discrepância da minha voz natural para o agudo que saiu fez graça na roda de amigos. Quando ele se distraiu, dei dois murros na cabeça e o berreiro infantil dele correndo para a casa do vizinho do meu amigo decretou minha vitória.

Dois prantos num só dia. Fui correndo para casa, os dedos da mão doendo à beça, avancei pela cozinha suado e fedido quando dei de cara com a mamãe, as manchas escuras na toalha e uma folha de papel à sua frente. Ela endireitou a coluna ao me ver, esfregou com violência as mãos cheirando a alho e desilusão no pano de prato áspero. Disse para eu não me preocupar, que ficaríamos todos bem. O peito magro dela era só solavancos, como se ela buscasse entupir sua mágoa com o ar contido, mas constantemente perdesse a briga. Mãe e filho em lados opostos do triunfo. Me segredou baixinho e chorosa que estava preparando o frango ao molho, meu preferido, para o jantar. Seus olhos estavam inchados e, na pia, de costas para mim, tornou a chorar um choro dolorido que eu só reconheci porque já a tinha visto assim quando a vovó havia morrido. Alguns segundos depois, ela amassou o papel pardo que jazia em cima da mesa e o atirou no lixo.

Mas eu o peguei. Tinha um texto aparentemente escrito com pressa, as letras vacilantes, meio caídas para frente, como se quem tivesse escrito estivesse com pressa e botasse o lápis à frente do que estava sendo escrito. Como se tivesse a vontade de acabar logo com aquela confissão. Era uma carta endereçada à Bebete, apelido que minha mãe ganhou de sua amante. A carta havia sido assinada pela nossa vizinha, que tinha se mudado na semana anterior. No bilhete, ela dizia justamente das causas de sair da casa ao lado da nossa, às pressas "uma fugitiva do amor que jamais esqueceria". Era o amor que ela sentia pela minha mãe. As duas começaram trocando dicas de amaciante e terminaram experimentando os lençóis uma da outra, nos meus treinos do futebol, antes de eu voltar da escola, elas escapavam uma para a casa da outra e se amavam, arrancavam as roupas, fundiam as peles até se desgrudarem lustrosas uma da outra. Na cama onde papai dormia, no sofá em que eu via tevê. A mamãe ganhou um CD da nossa vizinha, Dummy, de uma banda britânica chamada Portishead. Tinha a capa de um azul marinho intenso que me chamava os olhos sempre que eu passava pela sala. Foi o disco preferido da mamãe a vida dela toda. Nas confissões por escrito, nossa vizinha deixava pequenas memórias afetivas do cheiro que a casa da mamãe tinha. Na carta, não existia nossa casa, mas o lar de uma mulher por quem ela nutria demasiadas sentimentalidades, era um recorte fantasioso, de que não havia mais seres vivos quando elas estavam juntas, entrelaçando dedos, sentindo o escorregar do cabelo de uma no rosto avermelhado da outra. E por isso ela havia sumido, fugido. A amante da minha mãe se refugiou na realidade.

Eu não consegui jantar naquela noite. Papai devorou o frango ao molho como se lhe tivesse sido servido uma ambrosia, chupou os dedos gordos e peludos ruidosamente. Da mamãe não escutei nem o respiro, era uma mulher de cera desenhando com a unha sem esmalte figuras inexistentes na mesma toalha de mesa que, horas antes, expunha o teste de rorschach do maior trauma que ela poderia ter tido na vida. Ao sair da mesa, dei-lhe um beijo demorado na testa. Não sabia bem o que dizer, então nunca disse nada. Na manhã seguinte, fomos ao hospital porque eu havia fraturado a falange do dedo anelar.

Jader Pires