Baixe agora: Destinder, seu melhor app | Do Amor #217
Pés de mamute arrastavam-se pelo apartamento cheirando a bife queimado. Há dias se alimentava mal, saía pouco, o corpo vendo água dia não e mais um para, só depois, largar-se num banho pouco propositivo, a água desperdiçada caudalosamente pelas costas e entre as pernas separadas um palmo uma da outra. Estava no estado deplorável desde que terminou a relação, que não era um namoro, se viam esporadicamente três vezes na semana, porém evitavam qualquer rótulo, era uma brincadeira sadia que envolvia ver outras pessoas, mas tinha três meses que só viam um ao outro, os iogurtes preferidos dela tão lá na geladeira, acumulados desde o fim das visitas que ela faci antes do alvorecer, umas três da manhã, ébria e soltinha de tudo, escorregava para a cama dele e, lá para às onze, bebia a bebida de morango com alguns pedaços de fruta sentada no chão da sala vestindo a camiseta de futebol dele. Mantinham um silêncio cômodo e parceiro por mais uma horinha, café puro para ele e o testemunhar da musculatura dela relaxada na poltrona, do adutor curto ao vasto lateral, coxas tenras, morenas, dando pequeninos saltitos quando ela forçava o abdômen pra rir de qualquer besteira, a voz rouca das primeiras palavras.
A rotina pós desentendimento tem sido de se lamentar enquanto trabalha, reclamar para si enquanto treina na academia, refazer discussões em que ele sai vitorioso enquanto, imóvel, mira longos minutos a mesa onde o verdadeiro afastamento aconteceu, no canto exato onde ela deu o murro final, relatando cansaço, confessando incômodo de se sentir cobrada. Quando não está em algumas dessas funções, no tempo restante, baba os olhos nas fotografias colecionadas, os nudes que ela lhe mandava, os dedos dos pés magros com as unhas pintadas de preto, um contraste no sofá branco que convidava sua língua, esfregava o pau na sola, ela rindo, ele comendo ela com a bunda apoiada no braço. Mas o sofrimento do jovem do Tinder só completava-se ao vê-la, ou melhor, o perfil dela, disponível no aplicativo de paquera e pegação, o carrossel de fotografias novas, que ele nunca tinha visto, ela sorrindo, a fantasia dela no último carnaval com um underboob do biquininho azul turquesa.
Era o fim. Daquele ponto, sua vida não poderia afundar mais. Decidiu, então, baixar outro app, o Destinder, que apagava todos os traços da pessoa amada das vistas do resignado. Esmaltes pretos passaram a ser bloqueados, narizinhos mais larguinhos e bumbumzinhos sequinhos também, suas timelines limpas de iogurtes, morangos, protetor solar de baunilha e Adidas Samba verde com creme. As recomendações de restaurantes agora não ignoravam o mapa de calor da presença de seu desafeto no mapa da cidade, se ela transitava mais no centro, ele comia, sem nem pensar o porquê, na zona sul. Não ficou nem sabendo da parceria que a Fiona Apple fez com uma de suas duplas favoritas, o Iron & Wine, tudo que a ex-mulher do Paul Thomas Anderson faz agora fica retido na rede do Destinder, os livros da Annie Ernaux sempre oito vezes mais caros, não para que esquecesse, mas para que nunca pudesse mais obtê-los, uma ojeriza leve para que pudesse dar os próximos passos. No aniversário do Antônio, um de seus amigos prediletos, o relógio de pulso começou a apitar duas quadras antes do boteco onde a festança acontecia, uma arritmia acintosa, alerta de terremoto, de acidente na pista, de possível ataque de drones americanos fingindo ser aeronaves israelenses, volte para casa, proteja-se, tome um vinho com alguma outra garota do Tinder, olha aqui a Samanta, os cabelos negros dela.
"Os cabelos. Me lembram os dedinhos pintados dos pés dela".
O app Destinder liberou uma nova atualização naquela mesma madrugada.