A coceira que dá na gente | Do Amor #220
Coçou-lhe as solas dos pés, assim, logo de par, os dois calcanhares abrasados do raspar que um fazia no outro. Descalço, perambulava sobre o tapete da sala fazendo atrito, mas recebia de volta mais cócegas que alívio. Procurava com a língua grossa, curiosa por entre os dentes, algum sabor que nunca antes havia sentido. Abriu as janelas da sala e, igualzinho um cão, levantou a cabeça para onde o nariz apontava, em busca do céu, atrás de um cheiro, específico, que fizesse pulsar sua memória afetiva, o odor que conseguiria fazer com que ele se transformasse em um daqueles clichês de desenho animado, uma figura engraçada flutuando pelo ar atrás da essência que o arrebatara e mexera com seu coração.
Foi até o sofá e sentou-se, os dedos das mãos caçando o fim do tormento, encontrando na geometria dos pés, na curvatura côncava, as arredondadas plantas, cada calosidadezinha nos dedos. Coçava, coçava, friccionava e nada. O peito já em disparos, a garganta seca, o pinto duro. Na internet, não encontrou qualquer diagnóstico que juntasse todos aqueles sintomas ao mesmo tempo, e tornou a acreditar que eram os pés o foco do problema, dando ao restante a importância de consequências, meros coadjuvantes. Correu para os fundos, na área de serviços, e enfiou um dos pés sarnentos no balde com água. Nada, fez o percurso rápido até a cozinha, o rastro de pequenas poças que suas pegadas deixavam no chão, e retornou com saco de gelos, esparramou uma dúzia deles no balde e refez o movimento de antes. Nada. O formigueiro seguia, em nada a baixa temperatura fez para fazer às vezes de anestésico.
Correu até a rua e chorou na calçada. Ninguém parou para perguntar. Nu dos joelhos para baixo, deixou as solas levá-lo, de pouquinho, percebeu uma atividade para além de seus comandos. Era um fazer de suas bases, parecia até que dois exércitos de formigas o tivessem levantado e, com a força de cada um dos insetinhos, ele passasse a avançar até a esquina, depois até o quarteirão seguinte. A parte de baixo de sua cintura havia se tornado autônoma, primeiro em pequeninos passos, depois passou a cabriolar igualzinho um cordeiro, como se só a alegria lhe importasse nos joelhos e nas canelas, até finalmente se ver em uma corrida desenfreada pela avenida, desviando dos carros ao atravessar as faixas no farol vermelho, o som que escutava era um urro gutural que percebeu vir de sua boca só momentos depois. Estava possuído. Seus pés pegaram o metrô, trocaram de linha, desceram numa estação conhecida, num bairro que ele já havia estado, arrastaram o resto de seu corpo até o edifício bege e o dedinho do pé esquerdo tocou a campainha. Só então tudo fez sentido para ele. Nada mais lhe coçava nem incomodava. Estava aliviado.
Era só saudades dela.
— Oi. Você por um acaso tem chinelo pra me emprestar?