Afinal, quem é a amante? | Do Amor #223
O risquinho rosáceo, retilíneo, da fenda labial operada era o caminho do grande sorriso que a mãe dava ao olhar o filho dormir. A respiração frugal, ligeira, a membrana de cada pálpebra ainda um tanto translúcida, como se sua criança tivesse vontade de ver o mundo mesmo quando o sono vencesse a insistência dele de permanecer acordado. Por garantia, e os melhores desejos que seu neném aproveitasse o máximo da vida, deixava um feixe de luz sempre aparente no quarto, para que seu grande curiosinho não perdesse nada. Se a criança de fato enxergasse de olhos fechados, veria sua mamãe aos prantos. Enquanto espiava o sono de sua cria nascida meses antes, o corte na barriga da segunda cesárea ainda sensível ao toque, chorava a recém descoberta de o companheiro ter uma amante. Seis anos de relacionamento, um filho, morando juntos, e a pilha de raivas e ódios se acumulavam em sua têmpora, imaginar o amor de sua vida colado nos suores de outra, pedindo para desligar o ventilador como quando ele pedia para engravidá-la, mais de uma vez, para poder levar com ele os cheiros da outra. Doía-lhe ainda mais o fato do desprezo que ele invariavelmente teria com o próprio caçula, uma vida que passou por tanto em tão pouco, privado da presença paterna por conta de quê, uma aventura, um fogo no pau que não esperaria a porra do fim de um puerpério? Perguntava-se enquanto chorava e percebia o estômago contorcer-se em ácidos. Vinha-lhe o enjoo e a vontade de esmurrar a parede. Mas sorria. Tinha um filho lindo e corajoso e explorador.
Na sala, andou de um lado para o outro num circuito que parecia um oito, repassou contando nos dedos todos os indícios da traição, mordia a própria boca como se quisesse rasgar aquele desgraçado, por comer outra mulher, por negligenciar o filho, e principalmente por não ligar para a possível descoberta dela, não tentar encobrir erros e falhas, ocultar provas. Chegava em casa cada dia mais fedendo a perfume que não era dela, um doce melecado que tirava as narinas dela do sério. Nos critérios de virtudes e falhas de caráter meio distorcidos dela naquele recorte, ao menos uma tentativa de não deixar ela saber, descobrir, a malandragem que ele poderia tentar ter, seu marido ser um tremendo sacana seria melhor que o desinteressado adúltero que atravessava o pé de sua cama todas as noites. No celular, a mesma senha de quando se conheceram. Nas mensagens, Tinha o número dela, da outra, gravado apenas com nome, sem apelidos carinhosos, amorzinho, corações, nada, só que tinha a conversa com ela como entre as primeiras, o ar de ser das mais importantes, utilizadas e atualizadas. Ao ler as mensagens, encontros, elogios, fotografias. Não apagava os desejos confessados nem as imagens anexas, não tinha uma aba de conversa oculta, o zelo em esconder-se era inexistente. Enumerou os descasos e vomitou no corredor antes de chegar ao banheiro, uma pasta rala e esbranquiçada.
Ajoelhada, torcia o pano de chão entre os dedos repetindo mentalmente nunca ter um pingo dessa coragem de ser amante de um homem casado, de um pai com filho que ainda não havia comemorado aniversário algum. Colocar-se em algum encontro, num quarto de motel barato, levar para casa alguém que falta na mesa de jantar de outras pessoas, se abrir, cuspir na palma da mão para molhar sua entrada, deixar ele penetrá-la contando regressivamente os segundos que ele tinha para voltar ao seio familiar, talvez ter, ainda, viço e graça e penetrar outra vez a esposa, cantar a canção que cochichava lascivo em seu ouvido, mais tarde, uma versão terna e lenta para ninar a criança. Tornou a enjoar. largou o balde com água e suco gástrico e tomou nas mãos o telefone. Tinha enviado o perfil da outra para os seus contatos. Apertou tremendo a cara da moça e ouviu a primeira e a segunda chamada. A voz do outro lado chegou mansa e manteve-se inalterada quando inquirida, parecia que não tinha nada a esconder. Mas todo o conteúdo de seu discurso, as perguntas posteriores, escutava tudo cada vez mais distante, misturadas às pequenas explosões que se faziam em sua cabeça, a tontura veio a galope, a vertigem, a ânsia, deitou-se no chão da cozinha e ressoavam as afirmações da mulher do pai de seu filho, sim, mulher, casada com ele há doze anos, com casa comprada e quitada, um carro a mais na garagem para que ela, a mulher, pudesse levar as crianças dele na escola. Havia estragado a vida de outra pessoa pois, na soma e resta básica, era ela a amigada, a que ele procurou depois, a menina que lambia a palma da mão para molhar sua entrada e deixar ele penetrá-la, liberando inclusive o fim da camisinha, a gravidez, o bebê com fenda, fez ele dormir no hospital enquanto os outros filhos dele pegavam no sono sem o pai em casa.
Seu neném começou a chorar. Ela não se levantou para vê-lo.