Pensando nos amores dentro de um Uber | Do Amor #229
Era toda vez a mesma linha de raciocínio, botava os pés em São Paulo e pensava consigo a cafonice de tanto prédio espelhado, o reflexo do sol ardido de outono lá no vigésimo quinto andar tomando toda a atenção dela na avenida. Puta da cara, esfregava a ponta do salto alto nos pedriscos que viravam pó ante a fúria corporativa da Analista Três de Supply Chain. Vinha do interior para conferir sua pequenez diante da diretoria na matriz que fazia do trabalho dela gato e também sapato. Mas, equilibrava os argumentos na cabeça, era a grana deles, cabia a ela os avisos e direcionamentos. O carrinho acinzentado do Uber deslizava na tela em direção ao destino dela. bateu com o indicador no relógio dourado minúsculo, jurou para si nunca botar no pulso um daqueles smartwatch horrorosos, os óculos escuros âmbar em formato de olhos de abelha, oversized, entrou no Renault Kwid pela porta traseira do passageiro, lhe ensinaram que, em São Paulo, a gente fica o mais distante possível do motorista para quaisquer eventualidades.
“Eu tive um namorado na faculdade que usava esse perfume", ela soltou ao mesmo tempo que fazia algumas contabilidades dentro da bolsa. Depois encontrou os olhos do motorista pelo retrovisor e sorriu. E pensou ser melhor falar de amores do passado que de política. O rapaz que dirigia mexeu a cabeça para cima e para baixo silenciosamente correspondeu à memória olfativa da passageira. Disse rapidamente o nome da fragrância e acelerou. A moça até escutou e sorriu sabendo de seu acerto, mas a cabeça dela, afundada na reunião de mais cedo, a impedia de botar real atenção naquele ramo de conversa. Bufou quase que para ser ouvida e, com novo zelo do homem que dirigia, comentou que a cidade andava mais bagunçada que da última vez que passou por lá. Comentou ser de Rio Preto, falou da sua profissão e da empresa que representava os interesses no noroeste paulista. Cruzou e descruzou as pernas conforme as palavras inundaram a boca dela, aumentou a voz, perguntou “não é mesmo?” para o motorista que lhe ofereceu rápida cumplicidade. Precisava, a empresa em que ela trabalhava, na verdade todas as organizações do planeta, de um verdadeiro reconhecimento para com os profissionais, as pessoas são as que dão duro para fazer a máquina funcionar. Ela, ser esquecida na última promoção, era um disparate, a prova cabal de que somos, ela e as pessoas que trabalham nessas empresas, perecíveis e esquecidiços. “Onde tá a memória, cacete?", ela rugiu. Tirou os óculos enormes de inseto e passou, com cuidado para não borrar a maquiagem, um lenço de papel um pouco acima das maçãs do rosto. Nessa hora, quase deu com o rosto no encosto do banco do passageiro com a freada brusca do Kwid no farol. O rapaz que lhe dava carona levantou uma das mãos em desculpa, arrumou o espelho retrovisor, e encaixou os olhos negros nele para olhá-la de novo. O semáforo ficou verde, o carro não se movimentou, a buzina do veículo atrás deles os tirou do transe. Ele acelerou o kwid até o endereço indicado. Vez ou outra inclinava o rosto para o lado dela, como se tentasse vê-la melhor, o braço no outro banco, o corpo quase em quarenta e cinco graus. Não disse palavra alguma, mas se remexeu até o destino final. Ela não notou, concentrada no julgamento da falta de consideração de pouco antes, no trabalho.
Desceu do carro e agradeceu, deu quatro estrelas pela freada pesada e seguiu. Dentro do Kwid, o motorista tremia. Abriu o finado Facebook, procurou pelo nome dela e lá estava, uma fotografia mais antiga uns cinco, sete anos, mas era a mesma versão adulta da garota que ele namorou aos dezesseis. Ligou para um colega da época de escola e perguntou, sim, ele ainda sabia dela, ainda morava em Rio Preto, trabalhava para uma corporação de São Paulo. Era ela, as mãos dadas, os beijos carnudos e desengonçados de adolescentes, escondidos, prometeu uma vez que ele estaria sempre no coração dela. Mas ela o esqueceu. Nem cinco estrelas ela deu.