Os três amigos

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“Como abrir a porra de um cadeado de portão”. Enquanto Danna pesquisa no celular as instruções de funcionamento do estorvo que lacrava a passagem deles para a liberdade, o Diego se recosta na parede da garagem já meio desencorajado, como se previsse a trabalheira toda que daria para solucionar aquele porém. De lá ele observa todo o empenho do pobre Edu, atento aos sons que o ferrolho faz. Ele já leu em algum lugar que a peça era composta de oito partes distintas, de um lado o gancho e, dentro do corpo, o pino-segredo e o contrapino, que, devidamente alinhados no formato da chave, liberam o movimento da lingueta que prende a porra toda. E por isso o desespero do trio. A chave que serve para endireitar todo o mecanismo da coisa está perdida. Estão, eles, trancados para dentro de casa. “Uma bela de uma maneira de terminar a segunda-feira”, bufa Edu enquanto a Danna guarda o celular e volta para dentro da casa atrás do molho de chaves. Lá dentro, revira a mesa de novo e nada. Afasta os copos de cerveja, o desenho do Into the Wild que ela achou lindo quando o Edu pintou. Nada.

Para garantir, ela abre o computador atrás dos dados de compra dos ingressos do cinema de segunda, para ver se ainda dá tempo de chegar lá. “Se a gente sair em uns… vinte e dois minutos, talvez a gente pegue o filme logo que acabar os trailers”, ela calcula e solta em voz alta quando sai de volta na garagem. Ágil e de saco meio cheio, Edu se pendura no portão e pula para o outro lado. “Vambora, gente. Larga essa porra aí”. A fala dele sai meio esgarçada por conta da impulsão para o salto. Nisso, o Diego empurra a parede para ficar novamente equilibrado nos próprios pés e vai até o portão já com a cara amarrada, como se fosse um cachorro querendo latir para o invasor do outro lado. “Caralho, eu não vou pular essa merda”, ele resmunga enquanto faz cálculos cansativos com um pé na base do portão, enquanto ergue o braço para ver quanto trabalho a acrobacia vai render. Respira fundo e também se joga para o outro lado, um pouco mais desengonçado que o Edu, mas obtendo sucesso. Ao aterrizar, percebe que uma das mangas da camiseta rasga. É uma do KISS. Rasgada. Emputecido, ele aponta pro Edu e joga umas maldições, reclamando que foi errado fazer aquilo. “Porra, mas tu tens oito dessa”, devolve Edu, já falando para si mesmo antes da resposta do Diego. “Se bem que, se eu tivesse rasgado a minha camiseta do show do Queen, eu também estaria bem puto”. Ambos concordam enquanto ainda dão pequenas batidinhas pelo corpo, como se quisessem limpar a poeira do salto.

Ainda lá dentro, a Danna volta a pedir a atenção deles. “Cêis sabem bem que eu não vou pular essa porra de portão nem fodendo, né?”. Todos se entreolham num perfeito “mexican standoff”, mas como se pedissem ajuda um ao outro em vez de estarem se preparando para o ataque. “Vai, gente, dá seus pulos aí fora”, atira primeiro uma Danna já com sangue nos olhos. “Escuta, eu não quero perder esse filme. Bora”. Parece que ela liga o motor dos dois, que saem desembestados pela rua atrás da solução, mas sem saber ao certo atrás do que eles estão indo. É a hora de parar, ver ambos olhando no entorno, ver ambos se aproximar um do outro. “Meninada”, a Danna chama atenção deles de volta pra ela. “Pulp Fiction, galera, agilidade, vamos resolver essa”. Vincent Vega, Jules, carro sujo, Mr. Wolf. Claro! “Massa!”, responde o Diego, “vamos ligar pro marido da minha prima. Ele vai saber o que fazer”. Quando a ideia surge, os três param por alguns segundos e olham meio para cima, lembrando as mesmas boas lembranças, suspirando em perfeita harmonia. Eles estão com o marido da prima do Diego na cabeça, um velho roqueiro das antigas que já passou por todas e mais algumas, um senhor contador de histórias, com as melhores noitadas que eles já ouviram. O telefone começa a chamar e o Edu pede pra colocar no viva-voz. Afinal, todos merecem ouvir aquele cara falando. “Que baita cara”, a Danna solta e os três balançam a cabeça concordando entre si. O marido da prima do Diego atende e eles explicam o acontecido. Pedem auxílio, sugerem que ele vá até lá, como o Mr. Wolf no filme do Tarantino. A negativa é rápida, ele não pode sair de casa, mas conta uma bela história de quando ele e mais uns amigos ficaram presos num clube depois de tocar lá, de uma bebedeira homérica após do show e como o dono do bar esqueceu eles nos fundos e foi embora, de como eles fizeram para conseguir sair de lá com os equipamentos. “A gente arrombou o cadeado com um pé-de-cabras, porra. Faz isso. Quanto custa um bichinho desses?”.

Bingo! Agora basta arrombar aquele danado e ir pra sessão que já tá para começar. Eles não encontram um pé-de-cabra, mas descolam uma chave-de-roda do carro do vizinho. Enfiam no gancho e rompem o trinco na marra. A felicidade, o abraço a três, a voz da razão: “Cacete, a gente tá atrasado para um caralho”, afirma Danna já avançando para a direção que vai dar no cinema. Os três seguem pela mesma rua e no caminho vão afirmando a importância um do outro nesses cinemas de segunda, na vida deles, são categóricos e afirmam que não iriam deixar um deles para trás, fazer algo que julgam tão essencial sem que o tripé estivesse completo. Eles apreciam de fato a presença dos outros dois, cada um com sua peculiaridade, cada um deles um pequeno universo em constante intersecção. Um trombando no outro e um sendo empurrado pelo outro. Nada mais delicioso que repartir um ótimo filme no cinema em companhia, em trio.

“Que bosta de filme”. A Danna é a primeira a dizer quando eles saem da sala e recebe apoio dos outros dois. “Por favor, eu preciso tomar uma cerveja urgente pra lidar com esse filme ruim”, suplica Diego e todos aprovam o pedido rumando juntos para o Bar do Marquinhos, atrás da Uninorte, descendo a lenha no roteiro e fotografia, nas personagens soltas, na falta de conexão e nas soluções fáceis do diretor. Sentam-se na mesma mesa e pedem a de sempre. Cerveja para os três. Na mesa, enquanto o álcool entrava, a verdade saída. Trocam mais umas juras de amor entre brindes de copo americano, relembram das furadas na sala escura, Somos tão Jovens, Bonitinha mas Ordinária, Homem de Ferro 3. Mas lembram também do aniversário surpresa que o Alisson organizou para a Danna, ali mesmo no cinema, com bolo e tudo, com os amigos comendo tecos de bolo no escuro vendo filme. Realizam na matemática fundamental da porrada de tempo que estão juntos. Próximos. Do Django Livre em 2013 ao Call me by Your Name, dos adolescentes deixando para trás a fase jovem à magia com os três juntos e íntimos na mesa do boteco. “É mágico mesmo”, repete o Edu, depositando o peso das costas no encosto da cadeira e empurrando os pés para frente. Disso, ele sente o áspero incomum no chão e todos ouvem o barulho metálico contra o cimento debaixo da mesa. Todos olham juntos, take no contra plongée, corte seco para o chão e o chaveiro do Edu jogado atrás da perna da mesa de plástico.

Magia. Plano aberto. Os três curvados olhando debaixo da mesa. Zoom out. Fade out.

FIM.

Jader Pires