O Deserto Negro

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Na cabeça dela, seus filhos iriam morrer e os filhos deles ainda se lembrariam do que fizeram com ela naquela festa nefasta. Feito pintor batizando nova obra, alguém lá na desarrumação da foto ergueu o braço em sua direção e disparou com voz aguda “olha o dentinho preto da Alice!”. Era um divertimento e nada mais, outras de tantas que se acumulavam naquele ambiente. Só que, para ela, não se tratava de resto de confeito, mas uma escuridão real que tomava a frente de um de seus dentes. Tentou disfarçar, empenhou-se em pensar noutras coisas. Limpou com a língua, esfregou um guardanapo, seus novos amigos ainda rindo, e aquele negror foi ocupando cada vez mais espaço em sua boca, em sua mente, a gengiva foi tomando uma cor de piche, estalagmites e estalactites pontudas de carvão roçando umas contra as outras num ranger de humilhação. Era como se sua voz também tivesse sido acometida, transmutada para uma tonalidade mais terrosa, áspera.

Nina voltava do banheiro quando a viu fazer caretas, contorcendo a musculatura inferior da face, fechando e abrindo os olhos. Parecia tentar umedecer os lábios. Nina então se aproximou e levou consigo um copo de água, que Alice tragou feito alguém que se perdeu por dias no deserto. Estava pálida e permaneceu calada nos minutos seguintes. Escutava os comentários de Nina mas já não os respondia. A colega, percebendo a repentina tensão, tentou animá-la dizendo que, mais tarde, elas iriam se divertir como há muito não faziam. Conforme ela dava ideias de onde poderiam ir, com quem conseguiriam se encontrar, quanto mais empenhava-se em chamar novamente o entusiasmo da outra, de nada adiantava. Foi assim o resto do expediente, com trejeitos de estátua, deixando clientes em potencial passar em branco, não ligando para os que empacavam o começo de sua noite. Na hora de ir embora, Nina não encontrou a amiga, nem nos espelhos, onde costumava passar antes de sair em definitivo, e nem na saída ou mesmo no ponto de ônibus. Alice já estava com a mochila nas costas quando bateu o ponto e deixou tudo arrumado de sua parte. Foi esperar dois pontos à frente na avenida, justamente para não encontrar com ninguém. Queria que mais ninguém a visse como estava se vendo, com uma fenda cada vez mais sombria no rosto.

No dia seguinte, logo cedo antes do trabalho, foi ao dentista para uma consulta. Sua cavidade bucal estava completamente saudável. O odontólogo fez uma limpeza, indicou alguns produtos para prosseguir com a manutenção da higiene, elogiou a dentição sadia dela. Mas a situação ainda iria lhe consumir dia após dia todo o sossego. O trabalho novo se mostrou uma escolha acertada, ela vendia bem, seus argumentos mercadológicos foram elogiados pela Carmen que chegou a lhe oferecer um gole do seu suco, gesto educadamente recusado não por nojo, mas pelo aviso anterior de que ela podia ficar meio ranzinza no final do expediente se não se “hidratasse” o suficiente. Mas o custo estava ficando cada dia mais alto, sorrir virou um fardo que ninguém aliviava. Tinha dias que passava tudo bem, enxergava-se no espelho sem um rastro do que antes a incomodava, mas, sem motivo aparente, logo após alguma venda ou depois de voltar do banheiro, sentia a boca amarga, engolia um visco mais pesado, pegava o celular e via, no reflexo escuro, a mancha novamente lá. No centro do dente. Ver a risada deliciosa e nivelada de Nina aumentava ainda mais a sua ansiedade.

Alice retornou em outro consultório duas semanas depois. Precisava saber das possibilidades, queria orçar o procedimento mais avançado para reparar qualquer imperfeição na sua arcada. O cirurgião disse estar tudo bem com ela, após uma rápida avaliação, mas que esteticamente o método mais atual e certeiro seriam algumas lentes de contato em porcelana, pequenas capas de cerâmica fina, branca e dura, cimentadas sobre os dentes. “Elas são tão fininhas que lembram muito as películas oculares”. O entrave financeiro era problemático, o procedimento era dispendioso e demorado. Além da aplicação das lentes em si, havia também o processo de clareamento dos dentes, mais a organização de toda a arcada com aparelhos e acompanhamentos ortodônticos. Isso levaria, para ficar do jeitinho que Alice imaginava, um tratamento mínimo de um ano e meio. Depois seria mais fácil, apenas a manutenção do equipamento instalado.

Ela não tinha esse tempo todo.


Deserto Negro

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Este é um trecho curto do meu novo livro, "Deserto Negro", que está em campanha de financiamento coletivo neste instante!

Se você gosta do escritor aqui, do que ele escreve, vai lá emcatarse.me/desertonegro e participe da campanha, Escolhe lá a sua recompensa e vamos fazer juntos. É um momento bem especial para mim, o primeiro romance que coloco para ser publicado, uma história única que me deixou muito feliz de, agora, tentar disponibilizar para vocês.

Beleza?

Jader Pires