A menina do pai

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Três dias sem dormir, trabalhando em uma apresentação como freelancer. Olho pesado, o rosto luzente com da tela no quarto escuro. A cabeça pesava com o cansaço e a necessidade de atenção no que estava sendo feito. O barulho da porta o fez virar os olhos sem mexer o resto do crânio. Ela chegou meio apressada da massagem, e já estava com o saquinho de papel pardo amassado entre os dedos das duas mãos. Dentro, a embalagem com o teste de gravidez. Como já tinha dado duas “atrasadinhas”, aquele “vai e não vai” de semanas incomodou a ambos. A rotina intensa que ela estava tendo foi a preocupação final. Era melhor tirar a dúvida da frente do que perpetuar qualquer aflição. Iriam tirar a prova. 

Ainda com a cara enfiada no Power Point, escutou os passos dela até o banheiro. Primeiro acendeu a luz do espelho e depois fechou a porta. Era um procedimento meio chatinho, que pediu um pouco de privacidade. Terminada a principal tarefa, a de coletar o xixi, chamou-o para avançarem juntos. E lá estava ele, dos quadrantes simétricos do programa de computador para os quadriláteros dos azulejos do toalete. Era um cara todo grande e barbado, ocupava bom espaço do pequeno cômodo. Inclinando-se para observar o procedimento que seria realizado na pia, ele observava enquanto ela seguia. Era preciso mergulhar um palitinho no líquido para ver se estavam grávidos ou não. Ela segurou a ponta da varetinha com o indicador e o polegar, para que a imersão pudesse ser a mais profunda possível. Se ficasse rosa, nada. Estavam como sempre estiveram. Se ficasse azul, sinal positivo e tudo mudaria de figura. Mal desceu e o bastão azulou de um jeito que parecia gritar “super grávidos!”. Azul. O índigo tomou conta do bastão todo logo de cara. Enquanto ela encontrava o eixo para sentar-se na tampa do vaso, ele deixava seu corpo grandalhão escorregar pela parede até atingir a bunda no chão. E o silêncio. Por um instante parecia que o banheiro estava diminuindo de tamanho, como se quisesse engolir os dois, pequenos naquele mundo que conheciam tão bem e que, agora, se mostrava completamente desconhecido. 

Ele ia ser papai e ela ia ser mamãe. Um tanto para pensar e outro para se organizar. Um monte para aprender. “Quanto tempo?”, pensaram, “menos de nove meses?”. Mais silêncio ecoando na acústica do reservado. Ela, mãe e também mulher, também filha. Ele, pai e também amigo e designer. Mas agora mãe. E agora, pai. Sua boca, escondida pelos pelos da barba espessa foi aparecendo em ascendência, num sorriso meio bobo. Ergueu o braço e se levantou. Segurou a mão dela e puxou-a para si. Para perto. “Vamos lá. A gente vai fazer dar certo”, disse baixinho o suficiente para que ela o escutasse no abraço. Ao encostar um no outro, ela sentiu o coração dele disparado no peito, fato que a fez rir e perguntar se ele estava, de fato, bem. “É de alegria”, confessou. 

Um sobressalto. Se lembraram que, nos últimos dias, além da rotina de trabalho exacerbada por parte dele, ela estava tendo dias intensos nos exercícios. Dança e academia. E ainda por cima estava bebendo. Para que se acalmassem e tirassem a suspeita de qualquer problema, ficaram de marcar exames e o primeiro ultrassom, o que foi feito na primeira hora comercial do dia seguinte. “Para daqui duas semanas”, foi a mensagem que ela enviou. Nesse tempo, em vez de mais medo e incertezas, foi batendo neles dois o baque da realização de um sonho. “Vai mesmo rolar”, ele dizia para si enquanto trabalhava. Afinal, era uma conversa que já estava acontecendo. Até tinham planos de começar a testar e tentar em dois mil e dezoito, com uma possível gravidez para planos de nascimento em dezenove, se tivessem sorte. “Mas parece que o universo colocou todas as fichas no agora”, comentavam rindo. 

No dia do exame, um gelado aterrorizante na rua. Era meio de ano, um inverno de lascar. Ele seguia para a clínica e sentia o frio por fora e também por dentro da espinha. Na hora, julgou-se sortudo por estar sentado e não de pé. Suas pernas tremiam como varetinhas batendo umas nas outras com o vento. O coraçãozinho do bebê, escutado pelo casal pela primeira vez, ressoava feito escola de samba saindo pelas caixas de som da sala. Barulhento e vivo. Era o neném que eles estavam esperando! E passaram a ouvir, a cada consulta e a cada teste, a frase que julgaram ser a mais gostosa de escutar naqueles momentos e repetida mês após mês: “Tá tudo bem com o bebê”. 

Quando estava para completar o terceiro mês, já estavam quase dando com a língua nos dentes para contar a boa nova para as pessoas. Dividir. Dar e receber. Em frente ao computador, cabeça explodindo de contentamento, ele viu online o escritor que gostava de ler de quando em quando na Internet. Trocaram olás e, não se contendo, contou. O rapaz das escritas de amor foi o primeiro a saber. Confiou e contou. Recebeu os parabéns e se sentiu bem. Dias depois, foi até a casa do pai dele. Sozinho. Deixou o velho falar de uns assuntos banais, coisas do cotidiano. Deixou ele resmungar de algumas queixas, falar que tava com uns probleminhas nas costas. Foi a deixa. “Vai ver isso aí, hein”, ele aconselhou o pai, “que você vai precisar dessas costas boas para segurar o neto ou a neta que tá chegando”. O choro do velho foi sua alegria. Se abraçaram e trocaram. Um dos dias mais legais que já tiveram juntos. 

Mas ainda tinham que saber o sexo do bebê. No quarto mês, “tem indícios de ser menina”, disse o pediatra, “coisa de sessenta por cento”. Que virou setenta no quinto mês, setenta e cinco no sexto, oitenta e cinco no oitavo. “Só se acontecer algo muito fora da curva, vocês terão uma menina”, afirmou o médico. E ele sempre achando que seria pai de um menino, se viu na deliciosa tarefa de reformular suas ideias sobre a paternidade para receber uma garota em sua vida. A filhinha do papai. Essa coisinha deitada no colo dele, já de mamadeira tomada e pronta para mais uma de suas dormidas, linda e pegando no sono naquele corpão grande do pai dela enquanto ele calmamente canta, mais uma vez, e assim como todas as outras vezes, a música que escolheu para ser dele e dela. É uma dos Beatles, aquela banda inglesa que todo mundo amor nos anos sessenta e depois. “You were only waiting for this moment to be free Blackbird, fly...”

Jader Pires