A dupla
Depois de criar minimamente os dois filhos resolveu buscar viver a vida. Experimentou cedo a formosura e as algias do parto. Dois anos depois, outra vez. Deixou de lado os deveres externos, seu ganha-pão, todas as pompas da posição de admirada e foi ser mãe. Foram alguns anos de sorriso no rosto e suor na testa entre recreios e adestramentos. Aprenderam a engatinhar, conseguiram andar sozinhos e hoje praticam seus esportes depois da escola, gosto por movimento herdado todinho dela. Era hora abrir espaço e se olhar de novo fora da família. Mulher.
Começou a brincar com madeira e pano e logo pegou um trabalho e dois de molduras, tecido, estética. Mais um pouco e poderia tentar, mais uma vez, voltar a escrever as histórias de fantasias que tanto gosto lhe dava quando sonhava ser escritora. Recolheu-se também na vaidade e fechava, todos os dias, três turnos de cuidados. Tinha a academia, a yoga, corrida com as crianças, dançava jazz. Sempre em transpiração, ebulia prazer e felicidade.
Mas dedicação tanta é de cansar. Como acordar, se exercitar, tratar dos filhos, cozinhar, mais treino, mais trabalhos manuais, mais criança, mais banhos, mais danças, e ainda ser mulher do seu homem, ser mulher de si mesma e se esparramar no sofá para ler com teima e zelo os livros que gostava tanto de deliciar? Foi se obrigando a dormir mais tarde e acordar mais cedo. Acordava ainda no escuro para preparar as mudas de roupa do dia, as calças elásticas para ginástica e alongamentos, jeans para levar os filhos à escola, buscá-los, fazer as entregas de suas peças e seus lencinhos, blusinha de namorar mais tarde, pijaminha para madrugar sossegada quando todos já estão dormindo, atirada com as pernas para cima, cabelo molhado, cheirando a sabonete. Ia dormir já depois que os sinos retomavam à única badalada com a cabeça à mil.
Eram planos e projetos e a satisfação com seu corpo, sua elasticidade, a capacidade retomada de gostar de si e ter autonomia corporal para fazer o que achasse que devesse fazer. Ia dormir viva e não dormia. Passou a ficar acordada até um pouco mais tarde e acordava sempre cedo para retomar as atividades do dia. Sempre ativa demais. Sempre empolgada demais. Fazia cada vez mais coisas em velocidade tamanha que certa manhã, ainda acordada, foi dormir e topou consigo mesma recém acordada no corredor, rumo ao banho.
Deu bom dia, viu que estava sorrindo e desejou-lhe sorte.
Foi dormir feliz.